terça-feira, 27 de outubro de 2009

Saramago e a Bíblia - no rescaldo de uma polémica

A polémica das afirmações de José Saramago prosseguiú nos últimos dias. Ainda hoje, no DN, João Miguel Tavares escreve sobre o tema, afirmando: "Saramago está convencidíssimo de que Deus não existe, mas também está convencidíssimo de que Deus é um pulha. A isto chama-se a lógica da batata. Espero que Saramago escreva um livro sobre ela um dia destes." No sábado, Anselmo Borges convocou o filósofo ateu e marxista Ernst Bloch para o debate. Na segunda-feira, no Expresso online, era publicado na íntegra o debate entre Saramago e José Tolentino Mendonça. E domingo, no Público, ficava a crónica de frei Bento Domingues, aqui reproduzida a seguir e intitulada "Confronto na afabilidade".

1.Seja qual for o interesse literário de Caim de José Saramago, as declarações feitas no seu lançamento foram interpretadas em registo publicitário: o importante não é que se diga bem ou mal; o importante é que se fale.

Neste sentido, o êxito das palavras de Saramago não podia ter sido maior e mais rápido. Pôs o país a falar daquilo que, segundo o escritor, Portugal ignora: a Bíblia. Há quem diga que ele estava feito com a Sociedade Bíblica e os representantes dos três monoteísmos (Judaísmo, Cristianismo e Islão). Dizendo o pior das Sagradas Escrituras, faz um dinheirão. Por outro lado, a Bíblia e o Corão, livros malditos, conseguem uma publicidade que a beatice das Igrejas dificilmente poderia conseguir. Se, além disso, a Bíblia é o livro mais editado, vendido e lido, as declarações malditas tornaram-se uma bênção para José Saramago. Embora em posições contrárias e por razões diversas, todos teriam ganho com a ignorância que mutuamente se atribuem.

O autor de Caim não percebe como é que a Bíblia se tornou um guia espiritual: está cheia de horrores, incestos, traições, carnificinas. É um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana. Apesar deste tiroteio, disse que não iria causar problemas, na Igreja Católica, porque os católicos não lêem a Bíblia, só a hierarquia e ela não está para se incomodar com isso. Admitia que o livro pudesse incomodar os judeus, mas isso pouco lhe importava.

Precipitou-se. Segundo o DN, ficou surpreendido com “a frivolidade dos senhores da Igreja. Não leram o livro e vieram logo, com insólita rapidez, derramar-se em opiniões e desqualificações, tanto da obra como do seu autor. Como falta de seriedade intelectual, não se poderia esperar pior. Compreendo que tenham de ganhar o seu pão, mas não é necessário rebaixarem-se a este ponto".

Terá Saramago, no duplo papel de carrasco e vítima, esquecido que a discussão ainda não está centrada no livro – poucos ainda o terão lido –, mas nas suas declarações de ódio às religiões e à Bíblia? Uns atribuem as suas declarações a um estado de acentuada senilidade, outros dizem que esse ódio é do foro psiquiátrico: como não teve nem tem coragem de denunciar as mortandades e os crimes do comunismo, transfere, para um passado muito longínquo, as atrocidades que, em nome dessa ideologia ateia, foram cometidas durante a sua própria vida.

2. Na troca de insultos, na resposta ao ódio com o ódio, ao mal com o mal, não se salta fora da lei de talião: “olho por olho, dente por dente” (Ex 21, 23-25 e par.).

Na boca de Jesus, nasceu outra “lei”: “amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos difamam”. Vem, depois, a versão positiva da “regra de ouro”: “Fazei aos outros o que gostaríeis que os outros vos fizessem” (Lc 6, 27-31 e par.). Paulo resume tudo num só mandamento: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Rm 13, 8-10). Não se pode construir, com estes e outros aforismos do mesmo género, um manual ou um catecismo de ingenuidade. Jesus Cristo também lembrou uma regra de paradoxal sabedoria no mundo de contradições em que vivemos: “sede simples como as pombas e prudentes como a serpente” (Mt 10, 16).

Quem tiver lido a Bíblia sabe que esta biblioteca de muitos géneros literários, construída ao longo de séculos, não é um manual nem de bons nem de maus costumes. Os seus autores humanos caíram, muitas vezes, na tentação de atribuir a Deus, que está para além de todo o nome, não só o louvor, mas também os seus desejos de vingança. Não se deve tomar a parte pelo todo. Ler exige saber ler.

3. Foi traduzido, de Enzo Bianchi que esteve há pouco em Portugal, um livrinho com um título – Para uma Ética Partilhada – que resume o seu conteúdo e constitui uma boa ajuda para esta época de crispações, delícia de alguns meios de comunicação colonizados pelas touradas, por cenários de sangue. O livro abre com uma interrogação: Será ainda possível um confronto na afabilidade? Parte de uma verificação: “Para todos os que se empenharam no diálogo entre crentes cristãos e não cristãos, entre católicos e «laicos», para os próprios católicos que acreditam no diálogo vivido na escuta, no esforço de não desprezar o outro, mas de encetar com ele um confronto na afabilidade, estes últimos tempos podem dizer-se – em linguagem bíblica – «dias maus»”.

Crentes e não crentes acusam-se, mutuamente, de intransigência e arrogância. Não desesperemos. José Saramago acaba de dizer, numa entrevista ao JL: “se a alguém ocorrer fundar uma internacional da bondade eu inscrevo-me. Ela é fundamental, e eu coloco-a acima de qualquer atributo humano, incluindo a inteligência e a sensibilidade”.

No final do seu livro, Enzo Bianchi coloca a questão fundamental: quem é o ser humano? Para onde vai? “Como pode viver numa sociedade que luta contra a barbárie e a favor da humanização? Das respostas que cada qual, a partir do seu património espiritual, souber dar depende, sem dúvida, o nosso futuro, mas também, já desde hoje, a qualidade da nossa vida pessoal e da convivência civil”.

1 comentário:

Diego Cosmo disse...

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abraçoo