quarta-feira, 24 de julho de 2013

Indulgências pelo Twitter?

(ilustração: Twitter)

O anúncio de que o Vaticano teria concedido indulgências a todos os que participassem à distância na Jornada Mundial da Juventude (JMJ) fez levantar uma pequena polémica nos media. Afinal, os católicos podem agora ser perdoados através das redes sociais? E faz sentido manter a prática das indulgências, que se tornou um dos temas mais importantes a conduzir à Reforma de Lutero?
Verdade seja dita que, ao contrário do que foi publicado em muitos sítios, os sete milhões de seguidores do Papa na rede social Twitter não terão o perdão dos seus pecados apenas porque acompanham a JMJ.
Num texto publicado hoje pelo semanário francês La Vieexplica-se que o decreto do Vaticano sobre o tema apenas refere que os fiéis podem beneficiar das indulgência mediante certas condições: confessar-se, participar na missa, rezar e submeter-se filialmente “ao soberano pontífice”. Depois, seguindo pela rádio, televisão ou pelos “novos meios de comunicação” os principais actos da JMJ, poder-se-à beneficiar do perdão da indulgência. A medida, explica ainda o semanário, pretende atingir sobretudo os jovens que quereriam ir ao Rio de Janeiro mas que, não podendo fazê-lo, podem seguir o acontecimento através de telefones ou computadores.
A pergunta que se coloca é se faz sentido, para as actuais gerações de cristãos – e mais ainda para os jovens – manter uma prática como esta. Além da linguagem, que já pouco tem a ver com a cultura contemporânea, a própria teologia evoluiu e fala hoje muito mais do perdão gratuito de Deus do que de práticas quase mecânicas para o obter.

Iniciada no final da Idade Média (séculos XIII-XIV), a prática das indulgências foi associada ao primeiro “jubileu”, proclamado em 1300 pelo Papa Bonifácio VIII. A sua prática começou depois a ser objecto de abuso, com membros do clero a fazer tráfico, pedindo dinheiro em troca de indulgências. Em pleno Renascimento, a multiplicação desses abusos ficou também ligada ao financiamento da construção da Basílica de São Pedro. Foi esse facto que levou Martinho Lutero a criticar o abuso desse tráfico, o que acabou por levar à ruptura com o papado. Cinquenta anos mais tarde, o Concílio de Trento condenaria a venda das indulgências, mas a ruptura estava consumada.
O sentido original das indulgências explica-se segundo a visão católica tradicional do perdão e da reparação espiritual. Segundo essa perspectiva, não basta obter o perdão dos pecados na confissão e repará-los em concreto – por exemplo, devolvendo dinheiro roubado ou tentando remediar algum mal que se tenha feito a outra pessoa. É necessário também “expiá-los” espiritualmente, porque se parte do princípio de que o pecado de alguém fere todos os membros da Igreja – por isso se faz “penitência”, da mesma forma que fazer o bem beneficia todos os outros crentes.
Esta visão católica (distante da concepção protestante) completa-se com a ideia de que há uma comunicação entre a Igreja na terra, a Igreja celeste e o Purgatório (outra criação medieval, como bem explica Jacques Le Goff em O Nascimento do Purgatório, ed. Estampa). O próprio Papa João Paulo II, recorde-se, defendeu, numa série de catequeses semanais, que céu, purgatório e inferno não existem enquanto lugares físicos.
As indulgências apareceram no contexto doutrinal dessa existência do Purgatório e num ambiente vivencial de duras penitências dadas às pessoas quando iam confessar-se. Na mesma formulação, o Papa, que tinha o poder de perdoar ou não os pecados, podia também entrar no “tesouro da Igreja”, acumulado no céu pelo mérito dos santos. Por isso ele pode permitir, quando entende, o acesso a esse “tesouro” a todos os fiéis através de certas práticas devocionais.
“O problema é que a aquisição de uma indulgência plenária estipula, de modo claro, uma contrição perfeita, quer dizer o lamento firme de todas as suas faltas, pelo amor a Deus”, diz um padre especialista em Direito Canónico citado pelo La Vie.  “Ora, como podemos estar seguros de que estamos nesse estado? É impossível... O perigo é favorecer uma compreensão mecanicista e legalista dos actos que a Igreja pede para obter a indulgência plenária e levar as pessoas a acreditar que têm as contas fechadas com Deus porque já preencheram todas as casas...”
De facto, insistir em tais práticas devocionais não tem, hoje, qualquer sentido. Mesmo recuperando o sentido original, a doutrina e o tema são de tal modo rebuscados e complexos que o crente comum dificilmente atingirá o seu significado.
O perdão e a importância de se sentir perdoado têm que ser ensinados e experimentados de outra maneira, que não nesta lógica de algo que se pode alcançar apenas pela prática de devoções e fórmulas, como numa troca de mercadorias.

Karl Rahner escrevia, em Sobre a Inefabilidade de Deus – Experiências de um Teólogo Católico: “O tema da pecaminosidade do homem e do perdão da culpa por pura graça é, e certo sentido, algo secundário em comparação com o tema da autocomunicação de Deus. Não como se nós, no nosso egoísmo, não fôssemos pecadores incessantemente obstinados. Não como se nós não necessitássemos da graça divina do perdão, graça que há-de ser aceite por nós como pura graça, sem nenhuma pretensão nossa de ter direito a ela.” (citado em Dios, amor que descende – Escritos espirituales, ed. Sal Terrae)

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