quinta-feira, 13 de março de 2014

D. José Policarpo (1936-2014): cultura, mulheres, migrações e diálogo intercultural

Em 1999, Jorge Wemans e eu publicámos o livro Igreja e Democracia (ed. Multinova), que recolhia uma longa entrevista com D. José Policarpo. Na hora da morte do ex-patriarca de Lisboa, retomo aqui excertos do capítulo dedicado aos temas da cultura e da igualdade.


(foto reproduzida daqui)

A cultura é inevitavelmente dialéctica

P. – A Igreja tem uma grande preocupação em definir os campos permitidos à cultura, ao afirmar que determinadas expressões culturais são anti-cultura. Não há uma relação muito fácil entre a hierarquia católica e a produção cultural que, em algumas das suas expressões, é apontada pela Igreja como anti-cultura...

D. José Policarpo – Penso que é próprio de um juízo cultural — talvez mais do que em relação a qualquer outro sector humano — a dimensão ética e moral, que também faz parte da cultura. A cultura supõe discernimentos. Um ser humano que não sabe discernir e seleccionar os horizontes do aprofundamento cultural acaba por se perder no mare magnum das hipóteses. É próprio que cada grupo faça o discernimento cultural com aquilo que pensa da pessoa humana. Quando não estou de acordo, no discernimento cultural que faço, com a maneira como o Homem é concebido e proposto em certos autores ou em certos horizontes culturais, não significa que não os reconheça como cultura. Significa que é uma cultura com a qual estou em diálogo dialéctico, porventura em confronto, na medida em que a cultura é inevitavelmente dialéctica.
O conceito de anti-cultura entrou na linguagem contemporânea recentemente e é difícil de definir. Mas, em última análise, significa a proposta e a defesa de dimensões e de caminhos práticos para o Homem que nós sabemos, pela experiência histórica (e nós, os cristãos, também pela convicção da nossa fé) que se acabarão por revoltar contra o Homem. A uma corrente de interpretação da vida e da sociedade que, por exemplo, não respeite a vida humana, que relativize o valor supremo da vida humana, posso chamar-lhe anti-cultura.

A atitude da Igreja não é hoje a de afirmar que há áreas de produção cultural com a qual nem o contacto é positivo ao conhecimento. Mas por vezes temos a sensação de que quase há uma certa oposição...

A Igreja, no seu discernimento cultural tem uma proposta, que é a da dignidade da pessoa humana na sua relação com Deus e na relação fraterna com os irmãos. Essa proposta que é o Homem na sua inspiração evangélica (que não significa necessariamente o praticante, estamos diante da compreensão profunda do que é o mistério do Homem), leva a Igreja inevitavelmente a fazer discernimento. Mas a Igreja também é muito plural: pode haver quem se irrite com o que o vizinho do lado defende e quem não se irrite.

Fazendo uma comparação histórica, verificamos que já houve épocas em que a relação da Igreja com o fenómeno cultural era uma relação mecenática, de apoio ao desenvolvimento das artes, e hoje essa relação quase não existe.

E porque é que isso aconteceu? Aconteceu porque a Igreja foi, durante muito tempo, nas sociedades ocidentais, a principal, senão a única expressão comunitária. É muito difícil que, fora de um contexto comunitário, as pessoas, os indivíduos encontrem o lugar para a sua produção e o seu desenvolvimento cultural. A Igreja foi foco e mecenas de cultura porque era, na maior parte dos casos, a única expressão comunitária.
Também nunca foi completamente a única. Houve sempre expressões culturais, mesmo no universo do Ocidente, que aconteceram fora do horizonte específico da Igreja. Tão pouco hoje é a única, há outros enquadramentos e outros dinamismos de valorização comunitária. E quando hoje se diz que a Europa é um continente cuja cultura é de inspiração cristã, podemos dizer que o cristianismo foi a componente principal, mas não exclusiva, do caldear da cultura europeia. O judaísmo teve sempre um papel importante e a presença dos árabes foi também uma grande componente no caldear dessa cultura.

Essa cultura é uma cultura da igualdade, contudo há novas e crescentes desigualdades. Qual é a base para poder definir em que é que as pessoas são iguais: Porque ocupam o mesmo espaço geográfico? Pela sua raça? Pela sua língua?

 É um dos conceitos difíceis de exprimir desde a Revolução Francesa para cá, que fez da trilogia Igualdade, Liberdade, Fraternidade, o princípio da nova ordem. Desde a igualdade no conceito dos enciclopedistas que fizeram a Revolução Francesa até à igualdade filosófica — eu diria também a noção religiosa, cristã, que é fundamentalmente a afirmação da igualdade da dignidade de todos os seres.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, quando diz que todos os seres são iguais, refere-se à dignidade fundamental do ser humano. À dignidade da sua vida, da pessoa humana como projecto, da pessoa humana como qualquer coisa de sagrado. Significa que qualquer discriminação da pessoa, venha ela por fonte política, ideológica ou étnica, se se consagra no campo dos princípios, é injusta. Todos os seres humanos são iguais.
Nas sociedades contemporâneas voltámos, curiosamente, à intuição da Revolução Francesa, indo um pouco mais longe que esta declaração de princípios de igualdade, ao olhar para a igualdade realizada, ao modo como a igualdade acontece nos contextos sociais em que estamos. Na nossa cultura, neste momento, sublinha-se muito uma coisa com que estou completamente de acordo, que é a igualdade de oportunidades. Uma sociedade justa tem de garantir, o mais possível, que todos os seres humanos, exactamente porque eles têm essa igualdade fundamental, têm o direito de ser pessoas, de construir a sua própria história.
Não há igualdades feitas à partida. As igualdades sociais que sejam produzidas por uma força exterior à pessoa acabarão por ser opressoras. A pessoa humana tem de ter uma margem de auto-realização, de construção do seu projecto e, para isso, a igualdade de oportunidades parece-me uma boa definição do que é uma aplicação da igualdade já em sentido prático.
Há também as diversas igualdades que se vão discutindo. Hoje fala-se muito da igualdade entre homens e mulheres, na medida em que seja a afirmação da igualdade da dignidade como ser humano, a afirmação da igualdade de oportunidades e a exclusão de discriminações concretas na vida social pelo facto de se ser homem ou de ser mulher — como também de ser preto ou de ser branco, de ser isto ou ser aquilo. Tudo isso são concretizações pelas quais devemos lutar.
O conceito fundamental de igualdade e de igualdade de oportunidades inclui, no entanto, e necessariamente, o conceito do direito à diferença. Igualdades que sejam homogeneidades deixam de ser realizações positivas da igualdade. Às vezes esquecemos que a luta pelas igualdades não se traduz necessariamente por sermos a cópia uns dos outros ou termos os mesmos direitos ou a mesma realização. A diferença homem/mulher, por exemplo, é a grande divisão que a natureza nos proporcionou, mas que revela também uma enorme complementaridade.
As diferenças culturais têm a ver com o conceito de tolerância, de que já falámos. Uma tolerância que não seja apenas o não me importar que o vizinho do lado exista, mas que seja uma abertura e um reconhecimento dos valores que ele tem e que eu não tenho e que posso, pelo menos, apreciar e, porventura, partilhar.
Fala-se muito de interculturalidade, de diálogo intercultural. Não há diálogo intercultural fecundo se não há atenção à diferença, se não há esta consciência de que o outro é diferente de mim e que eu posso, no mínimo dos mínimos, ter a alegria de contemplar essa diferença. Mas que até posso partilhá-la.
  
Há mulheres capazes de exercer o ministério sacerdotal

Ninguém quer homogeneizar os sexos, mas a igualdade de oportunidades para ambos os sexos, em Portugal, está ainda muito longe de ser uma realidade, não lhe parece?

Penso que sim. Parece que historicamente é inelutável — na dialéctica de Marx, uma das formas históricas da revolução era a dialéctica entre os homens e as mulheres —, mas tenho pena que tenham que ser as mulheres sozinhas a reivindicar. A luta por um lugar dignificante da mulher na sociedade deve ser uma luta de homens e mulheres. Penso que é uma pena e um empobrecimento quando essa luta é só das mulheres. Claro que elas são as primeiras visadas e têm certamente, do seu universo, uma compreensão mais plena. Mas é isso que é interessante: por mais avançadas que sejam as sociedades, há aqui um mistério insondável do ser humano, pois dificilmente um homem penetra no universo feminino e vice-versa.
O único caminho onde isso ainda é possível é o amor e muitas vezes, nas sociedades, reage-se pragmaticamente a estes grandes fenómenos, a estes grandes movimentos. Pessoalmente não tenho uma simpatia congénita por movimentos feministas, mas tenho uma simpatia muito grande por todos os movimentos que sejam de defesa daquilo que há de mais precioso (que até nós, homens, temos), que é a complementaridade das nossas irmãs mulheres. Descobri uma coisa muito simples: é que dignificar a mulher é dignificar a sociedade, é dignificar a cultura, é dignificar o próprio homem.

Como é que encara nesse contexto o debate sobre as quotas de mulheres para os lugares políticos?

É uma questão menor num problema grande. Acho uma tentativa um pouco coxa, justificável numa dialéctica momentânea dos partidos. Eu diria que, do mal, o menos. Mas parece coxo porque fica por resolver a questão fundamental, de uma sociedade de verdadeira igualdade de oportunidades, onde ninguém é excluído da responsabilidade política mas onde não se chega à política por se ser isto ou aquilo. É evidente que isto só é possível com uma grande mudança de mentalidade e com uma sociedade que proteja a mulher nas tarefas em que ela é insubstituível.

É um sintoma mais grave o que se passa ao nível da violência sobre as mulheres?

É com certeza mais grave. Porque a violência sobre as mulheres oprime-as a elas, mas é o sintoma mais grave e mais triste do aviltamento do homem. Um homem que violenta uma mulher é um homem que desce o mais baixo que pode descer. A violência sobre a mulher não é um sintoma grave só para as mulheres, é um sintoma grave da sociedade, é um sintoma grave do próprio homem como ser masculino.

Como é que um país como o nosso, tradicionalmente católico, com um fundo religioso, chegou a este fenómeno de violência?

Como é que chegou ou como é que ainda não saiu dele?

Ou como não saiu dele?... A mensagem cristã não penetrou na cultura das pessoas?

Tenho uma visão muito mais simplista. O fenómeno é velho. A violência entre homens e mulheres não se pode isolar da violência da sociedade. Talvez ela hoje se exprima mais. E infelizmente, como se tem visto nas notícias e nos estudos que têm sido feitos, tem sido trazido ao de cima o rosto silencioso e sofrido da violência no seio familiar, que era menos conhecido. Hoje, as ciências de análise revelam-nos coisas que se passavam muitas vezes no silêncio e na intimidade do lar. Certamente, esse é um contexto onde as coisas podem acontecer, mas não se pode desligar da violência no seu todo. Um ser humano que não venceu a etapa da violência, reage com violência na relação pai-filho, homem-mulher, patrão-empregado. O que há a vencer é a etapa da violência. Isso é uma luta que a humanidade há-de travar até ao fim porque não creio que alguma vez, neste mundo, ela se ultrapasse completamente.
Quando digo que tenho sobre isto uma análise muito mais simplista é porque penso que, na nossa sociedade, o que isso denuncia é a tremenda fragilidade na educação. É pura e simplesmente uma fragilidade educacional. Um ser humano que tenha uma educação sã, sadia e que foi educado no respeito pelo outro e pela sociedade, há certas coisas que não faz: não rouba carteiras na rua, não bate nas mulheres... (...)

Falando ainda da igualdade de dignidade entre os sexos: não faz falta à hierarquia católica a presença também de um modo feminino de ser pastor?

Essa é uma questão hoje muito disputada. Ao nível da consciência colectiva e dos mass media, foi levantada nos últimos anos.
Há na Igreja Católica, para já, uma posição quase dirimente do acesso das mulheres ao ministério ordenado. Respondo a isso contando uma história. Durante alguns anos, representei os bispos portugueses na Comissão dos Episcopados da Comunidade Europeia. Um dia, perguntei ao representante da Dinamarca como é que, naquele país, tinha corrido a experiência das mulheres-presbíteros na Igreja Luterana. Ele deu-me uma resposta curiosa: quando a novidade surgiu, criou uma certa polémica social, pois a sociedade dinamarquesa não estava preparada para ver a mulher num lugar cimeiro da comunidade eclesial, na confissão maioritária que é a luterana; mas, ultrapassado esse primeiro momento de impacto social, elas são muito bem aceites em certas tarefas, como a de capelães hospitalares. São menos aceites na condução litúrgica da comunidade. De qualquer maneira, o juízo deste senhor era positivo, no que dizia respeito à experiência da Igreja Luterana na Dinamarca.
É difícil responder a essa questão na Igreja Católica, que deu sempre um lugar muito importante à mulher, mas noutras tarefas e noutros sectores. Se alguma vez isso viesse a acontecer, teríamos inevitavelmente um período de adaptação das comunidades e das pessoas à presença das mulheres nesse ministério. Que elas eram capazes — as que tivessem vocação para isso —, não tenho dúvidas. Há mulheres capazes de exercer esse ministério.
As razões pelas quais a Igreja Católica não se abriu ainda a essa hipótese são sobretudo as da tradição apostólica, que foi sempre de homens. Não creio que as coisas estejam ainda amadurecidas e não é por via da reivindicação que se lá chega. Terão que ser as comunidades e a Igreja, como um todo, a amadurecer o assunto. É um facto que hoje, mesmo dentro da Igreja Católica, se aceitam mulheres em papéis que há trinta anos eram impensáveis. Eu responderia assim à pergunta, num sentido mais amplo...

Mas, num sentido amplo, reconhece que, olhando para a História, é pena que a Igreja Católica não tenha esse modo feminino de ser pastor como tradição? Podia ser um enriquecimento.

Esta questão tem muito a ver com uma outra, de que nós estamos agora a começar a sair e a fazer a síntese: a de uma Igreja demasiadamente clericalizada, feita a partir da hierarquia. Na medida em que a Igreja seja mais Povo de Deus e que este ministério seja estritamente para o essencial do que é o ministério ordenado, penso que ganhará mais realce a Igreja-comunidade, a Igreja-Povo de Deus. E ressaltará muito mais a dimensão pastoral da presença feminina do que neste esquema de Igreja clericalizada.
Nessa hipótese, não tenho dúvidas nenhumas em dizer que a Igreja, como comunidade, não só precisa mas ganha com isso, e tem já uma presença feminina muito forte, mesmo ao nível pastoral. Há mulheres que exercem responsabilidades pastorais em sectores importantes da vida da comunidade e já não sei imaginar a Igreja sem a força dessa presença feminina.

Migrações obrigam a repensar cidadania

Reconhecermo-nos cidadãos de uma mesma democracia envolve não só a afirmação da igualdade, mas alguma identificação entre as pessoas. Em sociedades abertas, a imigração e as desigualdades colocam o problema de saber a quem se reconhece a cidadania. Não estamos a caminhar no sentido de uma definição demasiado restritiva de quem é cidadão e pode ter todos os direitos?

A questão é muito complexa, porque a Humanidade está num ponto de viragem. A cidadania é uma das categorias que dão fundamento à organização humana. Durante séculos, ela foi constituída por pólos de unidade: a mesma cultura, a mesma raça (embora a pluralidade étnica desde há muito se tenha introduzido nas sociedades), a mesma língua (dificilmente se pode imaginar a cidadania sem uma mesma língua). O fenómeno da transmutação de populações, as emigrações e as migrações internas, sejam por que motivos forem (económicos, políticos, de segurança), nunca como hoje se verificaram na história da Humanidade.
Do conceito de emigração faz parte o da comunidade que acolhe e daqueles que são acolhidos. No caso concreto de Portugal, pode haver pessoas ou grupos que desembarcam aqui por serem refugiados políticos ou por virem à procura de um mercado de trabalho mais amplo e de uma  melhor situação económica. Eles estão na situação de serem acolhidos — logo, tem que haver uma comunidade que acolhe. Não seria bom que esses imigrantes chegassem e se confundissem com toda a gente. Isso levaria a comunidade que acolhe a correr o risco de perder a alma e a identidade. Quando, numa casa, já não se sabe quem é visita e quem é da família que recebe, as coisas não correm bem.
Dentro deste conceito, muito simples, de uma comunidade acolhedora e da pessoa que é acolhida, há uma fronteira de cidadania política. Quem chega é um hóspede e quem acolhe é capaz de o fazer, mas não se identifica, à partida e imediatamente, com os acolhidos.
Hoje, as comunidades de acolhimento estão sob grandes pressões, que levam ao fenómeno de se fecharem as portas, como estamos a verificar nas sociedades ocidentais. São tantos os que batem à porta que esse facto acaba por criar uma atitude de defesa: “Não temos lugar para todos, tenham paciência, já acolhemos vinte, não podemos acolher vinte e cinco.”
A restrição ao acolhimento é um problema sério, que nos vai certamente obrigar a pensar a humanidade em que queremos viver. É preocupante o que se passa, neste momento, na União Europeia. Com acordos como o de Schengen, corre-se o risco — embora tal não esteja na intenção moral de nenhum líder europeu actual — de, na prática, acabarmos por construir uma espécie de fortaleza protegida contra os povos do mundo e os forasteiros que olham para o Ocidente mais rico e desenvolvido como uma pátria de acolhimento.
Há também o problema da integração, a médio e a longo prazo, das pessoas que chegam, facto que leva as sociedades a criar mecanismos legais. Essas leis têm que ser feitas com abertura, mas, ao mesmo tempo, com prudência e sabedoria. São esses mecanismos legais os únicos que permitem que, sem rupturas — ou seja, sem deixar de saber quem acolhe e quem é acolhido — se realize a inserção, em plena cidadania, das pessoas que estão cá há bastante tempo, que têm laços. Hoje relativizou-se muito a dimensão étnica...

Ainda que haja guerra na Europa...

Mas, na consciência internacional, essa dimensão está relativizada. A China ainda valoriza muito a dimensão étnica no acolhimento da cidadania, mas no resto do Mundo esse não é hoje o critério mais importante. Conhecer e falar a língua ou identificar-se com uma história são motivações mais importantes. Curiosamente, um país como os Estados Unidos, que foi um dos países de acolhimento mais abertos dos últimos dois séculos, um país que acolhe toda a gente desde que se consiga lá entrar, mantém-se restritivo em relação à assunção da cidadania. Mas, os que a obtêm é porque mostraram ser capazes de viver naquela sociedade como americanos, identificando-se com a história do país e com um conhecimento da língua. São dados mínimos... (...)

Há um fenómeno que toca franjas das populações imigrantes, mas não só, que é o das pessoas que estão à margem do sistema, sem direitos. Preocupa-o esta situação?

Preocupa. Neste problema, a grande questão não é política, é social. A fronteira acaba sempre por ser entre os pobres e os ricos e, nesse caso, a situação complica-se e ganha outros horizontes. No fenómeno da migração económica, passámos de pequenos grupos que era fácil acolher para multidões vindas dos países pobres em busca de trabalho em sociedades que, por sua vez, podem entrar em crise interna, com o desencadeamento de fenómenos de egoísmo e auto-defesa. Há reacções que são já fruto da auto-defesa interna dos grupos que construíram, durante um período de tempo, uma história e uma situação social de bem-estar e que não estão dispostos, de maneira nenhuma, a vê-los postos em questão pela quantidade de gente que vem de fora e exige esse acolhimento.
Mais uma vez, este é um problema de prudência e de sabedoria: os nossos irmãos que vêm das antigas colónias por vezes nem sequer facilitam a integração mínima que é a legalização como emigrantes. São um alvo fácil para todo o tipo de exploração porque infelizmente, na sociedade, há sempre alguém que está disposto a explorar alguém.
O governo português tem tido uma política, cujas últimas manifestações foram generosas, de facilitação da legalização das pessoas que estavam sem documentos. Mas muitas não querem e outras nem sequer deram por isso, o que faz com que o conjunto de pessoas na clandestinidade ainda seja muito grande. O que não é bom. As sociedades contemporâneas, super-organizadas como as ocidentais, não podem ter uma percentagem de coabitantes sem saberem que eles cá estão: o mínimo que precisamos de saber é quem cá está. Até para sabermos como havemos de os acolher...
Voltamos à ideia do acolhimento. Este fenómeno da clandestinidade acontece hoje em todas as sociedades. Nós, portugueses, temos nisso uma longa e dolorosa experiência. É uma das componentes maiores da mobilidade entre os povos. E as sociedades, nos últimos trinta anos, deram passos significativos para acabar com essa marginalidade social.



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