sexta-feira, 2 de maio de 2014

A luta dos católicos contra a ditadura (14) – A falta de lucidez da Igreja Católica em relação à guerra colonial

25 de Abril, 40 anos

(texto publicado a 21 de Abril de 1999, no Público, a propósito do livro Lisboa no Tempo do Cardeal Cerejeira – Um Testemunho, do padre Luís Mafra, assistente da Acção Católica; mantiveram-se as referencias temporais)



“Como a Igreja não tomava qualquer posição, dava a impressão de que estava a apoiar o Governo.” O padre Luís de Azevedo Mafra, antigo assistente de movimentos de Acção Católica no tempo do cardeal Cerejeira, sintetiza deste modo a atitude dominante da Igreja Católica e da sua hierarquia em relação ao regime do Estado Novo e aos diversos episódios da relação entre as duas instituições. Um livro de memórias e documentos faz um balanço de uma época.
“A grande base de sustentação do Estado Novo não foram tanto os nacionalistas, mas os católicos” e se, em relação ao regime e à guerra colonial, a Igreja Católica “tivesse sido mais lúcida, como alguns dos seus membros o foram, e tomado uma atitude, não revolucionária, mas mais justamente crítica, independente, corajosa e menos conformista, a situação não teria durado tanto tempo”.
Esta é uma ideia defendida por muita gente, mas ela adquire maior importância vinda de quem vem: o padre Luís de Azevedo Mafra, 72 anos, antigo assistente de movimentos de Acção Católica. No seu livro Lisboa no Tempo do Cardeal Cerejeira – Um Testemunho (ed. Centro de Estudos de História Religiosa/Universidade Católica Portuguesa), de onde a citação é retirada, o autor reúne um conjunto de notas e excertos dos seus diários pessoais, para recordar algumas facetas do antigo patriarca de Lisboa e o modo como ele agiu em diversos episódios de conflito entre a Igreja e o regime e referentes à estruturação pastoral do patriarcado.
Um deles foi a viagem do então Papa Paulo VI a Bombaim, na Índia, em 1964, que Salazar tomou como uma afronta, já que se realizava três anos depois de a União Indiana ter anexado as possessões portugueses no seu território (Goa, Damão e Diu). Para muitos católicos, o silêncio dos bispos em relação às críticas de Salazar ao Papa era muito constrangedor. E, por todo o país, padres e leigos pressionavam para que o episcopado tomasse uma posição de defesa do Papa.
O padre Mafra foi um dos que escreveu a Cerejeira nesse sentido, dando-lhe conta do embaraço de muitos católicos. “A situação era equívoca. Como a Igreja não tomava qualquer posição, dava a impressão de que estava a apoiar o Governo” nas críticas ao Papa, explica Luís Mafra. Na sequência da carta, o cardeal Cerejeira chamou o padre para conversar com ele e explicar-lhe as suas razões. “Foi um encontro elucidativo: ele não estava na disposição de clarificar as coisas, nadava em águas turvas pelo receio de trazer prejuízos para a Igreja. Negava que a Igreja estivesse do lado do Governo, mas receava que uma atitude crítica fosse prejudicial para a Igreja”. E conclui, em forma de síntese sobre o grau de simpatia de Cerejeira para com o regime: “Não era fascista, mas não era propriamente um democrata.”

“O falar pode fazer desabar tudo...”

No seu livro, o antigo assistente da Acção Católica cita o que registou no seu diário, reproduzindo os argumentos do patriarca de Lisboa: “[A Igreja] não porá nunca a hipótese de afirmar o que não é verdade ou de abdicar da defesa dos valores fundamentais. Mas, fora deste caso, não será mais sensato calar-se quando o falar pode fazer desabar tudo?”

O Governo de Oliveira Salazar, analisa agora o padre Mafra, “não encontrou resistência a não ser por parte da esquerda política, que o regime reprimia”. Ora, “se da parte dos bispos e do clero tivesse havido uma atitude mais justa e mais lúcida, isso teria arrastado os crentes e ajudado a perceber que o regime não estava certo”. Faltou, sobretudo ao episcopado, “mais lucidez, mais firmeza, menos tolerância e menos transigência” nas relações com Salazar.
Luís de Azevedo Mafra não era adepto de formas radicais de contestação – nem ao regime, nem dentro da própria Igreja. Por isso, preferia sempre conhecer os argumentos de quem estava no centro dos problemas e não queria pôr em risco a unidade do clero. Em 4 de Janeiro de 1965, o padre contava, no seu diário, os argumentos de um colega da residência onde morava: “Não podemos agir como elementos de fora; temos de comportar-nos como membros dela, sofrendo e humilhando-nos na aceitação das directivas incompreensíveis dos nossos pastores e nada fazendo que leve à divisão. O nosso sacrifício será por certo factor de construção do reino de Deus.” Conclui o padre Mafra ter dado a essa argumentação o seu “inteiro apoio”.


Título do Diário de Notícias relativo á audiência de Paulo VI com os líderes 
dos movimentos de libertação de Angola, Guiné-Bissau e Moçambique: 
depois da visita à Índia, este foi outro episódio de tensão com o Estado Novo

Apesar de privilegiar essa forma de actuar – que passava por correspondência, conversas de grupo, movimentações de bastidores – Luís de Azevedo Mafra analisa no seu livro que o episódio da visita de Paulo VI a Bombaim deixou feridas insanáveis entre o clero de Lisboa e o seu patriarca: “Ficaram incubados germes de contestação e rebelião que, mais tarde, se haviam de activar perante novas situações de descontentamento e produzir frutos amargos. Creio poder dizer que foram três os principais factores que para tal concorreram: razões políticas do regime no poder e da sua actuação (autoritarismo, repressão da liberdade, colonialismo e guerra do Ultramar), deficiências de ordenação pastoral, e discussão da relação padre-bispo e do estatuto do padre.”
O jornal oficioso do episcopado – o “Novidades” – foi outro dos temas que contribuiu para o aparecimento de algumas posições críticas. Escreve o padre Mafra no seu livro: “O ‘Novidades’ poderia satisfazer o ‘establishment’ católico; não satisfazia, porém, os que queriam mais objectividade, independência e renovação. No aspecto político, seguia a linha conformista, senão apoiante do regime, da Igreja portuguesa. Era o que muitos católicos, inclusivamente padres, por esse país fora apreciavam.”
Outro caso foi o do padre Felicidade Alves, crítico do regime e que Cerejeira acabou por demitir das suas funções de pároco de Belém e suspender do ministério sacerdotal, depois de um período de conflito. Luís Mafra diz que, embora discordasse dos métodos do colega, o cardeal Gonçalves Cerejeira falhou, fechando-se à hipótese de um encontro de reconciliação. O próprio padre Mafra fez essa proposta a Cerejeira e a recusa deste “cortou em absoluto qualquer possibilidade de chegar ao entendimento”.
Também a actividade de renovação pastoral do patriarca de Lisboa acabou por merecer nota crítica: a constante indefinição das estruturas de decisão erigidas pelo cardeal Cerejeira e a sua demora em convocá-las e em reuni-las acentuou o desencanto de alguns padres. Luís Mafra conclui as cem páginas do seu livro com a história dessas ilusões e uma síntese da desilusão final: “Apreciações, ideias, sugestões, propostas houve em abundância; ficou-me, porém, a sensação de terem sido mal aproveitadas e não se traduziram satisfatoriamente em atitudes concretas. Por falta de capacidade de aproveitamento ou por obstáculos reais, contratempos ou oposição? Não sei. Foi uma oportunidade que alguns utilizámos numa tentativa para dinamizar e romper barreiras à reestruturação pastoral, mas que praticamente não resultou.”

A “figura majestosa” do patriarca

O cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira era um homem “muito complexo, com muitas facetas que, por vezes, é difícil entender”. O padre Luís de Azevedo Mafra, que contactou com o antigo patriarca de Lisboa durante quase 30 anos, guarda muitas memórias do homem com quem falou, pela primeira vez, em 1943.
Seis anos antes desse encontro, o futuro padre tinha sido crismado na antiga igreja de Arroios, tinha ele 10 anos; o patriarca estava nos 48. “Fiquei deslumbrado com a figura majestosa do senhor patriarca, vestido de vermelho e roupagens amplas que lhe davam ainda mais o ar de alguém que não era deste mundo”, conta ele no livro Lisboa no Tempo do Cardeal Cerejeira – Um Testemunho. “Depois aproximei-me reverente para ser crismado, quase com a sensação de tocar a divindade. O seu rosto, porém, pareceu-me fechado e distante; e da sua imagem mais não ficou do que o esplendor que me tinha impressionado.”
Depois de três décadas de contacto – escrito e pessoal – com o patriarca, o padre Mafra registou, naquela pequena obra de cem páginas, excertos do seu diário pessoal, correspondência, notas e textos inéditos sobre o que viveu no exercício das suas funções pastorais em Lisboa, essencialmente enquanto assistente dos movimentos de Acção Católica.
No livro, Luís Mafra sintetiza outras características do cardeal Cerejeira: “Tinha uma forma de agir demasiado diplomática, com prejuízo de uma transparência muito desejada, e preocupava-se em dar uma imagem prestigiosa da Igreja, no sentido de valorizar os elementos temporais que para isso concorressem. Não o conheci propriamente autoritário, mas possuía um conceito muito arreigado de autoridade que o levava a uma actuação excessivamente pessoal, sem ouvir como seria conveniente aqueles a quem os assuntos diziam respeito. Cioso da legítima autoridade do bispo, frequentemente reagia como se quisessem contestar-lha, quando, em verdade, isso não acontecia.”

Cerejeira marcou também, enquanto chefe incontestado do episcopado português, a ambiguidade com que a Igreja se relacionou com o ditador Oliveira Salazar. No início da década de 60, recorda Luís Mafra, os assistentes da Acção Católica resolveram pedir a Cerejeira e aos outros bispos que tomassem “uma atitude muito clara que descomprometesse nitidamente a Igreja” (sobretudo a hierarquia) em relação ao regime”. Em audiência concedida ao grupo, o patriarca de Lisboa negou o gesto.

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