segunda-feira, 19 de maio de 2014

Padres "trepadores" e Deus activista

No Correio da Manhã, Fernando Calado Rodrigues escrevia sexta-feira sobre Padres “trepadores”:

Seria bom que as montanhas ganhassem novos alpinistas e que a Igreja se libertasse desses “trepadores” que procuram o poder pelo poder. E seria bom, também, que os fiéis deixassem de olhar para os sacerdotes como meros funcionários do sagrado, a quem se recorre para determinados serviços, e encontrassem neles os guias espirituais de que necessitam.
(o texto pode ser lido aqui na íntegra)


No Público de domingo, frei Bento Domingues escreveu no domingo sobre Deus activista dos Direitos Humanos:

1. Roubei este título a uma obra de Boaventura de Sousa Santos – Se Deus fosse um activista dos Direitos Humanos – (Almedina, 2013). Como, porém, Deus é a palavra dos usos mais sublimes e mais perversos, antes de me deter nessa obra notável, respondo à minha pergunta, ao modo dos escolásticos, dizendo: distingo!
Importa, com efeito, saber de que Deus se trata nessa interrogação. Se for aquele que me apresentaram quando comecei a ir à Missa, à catequese, aos sermões que ameaçavam os “pecadores” com o inferno, esse Deus que mandava os padres insistir nos pecados - o original e o actual, o venial e o mortal, além do pior de todos, o sacrilégio – nada tinha a ver com um activista dos direitos humanos. Antes pelo contrário.
O Deus da teologia nacionalista de Israel - presente em muitas passagens da Bíblia - que incita à guerra a e ao extermínio dos inimigos - porque eterno é o seu amor! – também não é propriamente  um bom defensor dos direitos humanos.

Aquele que é invocado para justificar as Inquisições, etc., e é o Deus de grupos “cristãos” rivais que se odeiam e matam nas chamadas guerras de religião, é apenas um ídolo da violência.
Quando em nome de Alá se ameaçam, raptam e matam os infiéis, esse Deus é um inimigo público da humanidade; quando em nome da destruição do “eixo do mal” é semeada a violência, a guerra e a tortura, o recurso a Deus é uma blasfémia.
2. Tudo isso é abominável. Mas não podemos ignorar que a palavraDeus evoca, sobretudo na corrente sapiencial da Bíblia, Aquele que olha o mundo como a construção de um poema e o ser humano (homem e mulher) surge como a coroa da bondade e da beleza do universo, a zelar por um jardim. É o contrário de um Deus centrado no pecado e na morte. Transcrevo do Livro da Sabedoria: “Tu tens compaixão de todos, pois tudo podes e desvias os olhos dos pecados dos seres humanos, a fim de os levar à conversão. Tu amas tudo o que existe e não detestas nada do que fizeste; pois, se odiasses alguma coisa, não a terias criado. Como poderia subsistir se tu a não quisesses? Ou como se conservaria, se não tivesse sido chamada por ti? Tu tratas bem de todos, porque todos são teus, ó Senhor, que amas a vida (Sb. 11,23-26).
Diante do crime, do desprezo ou da indiferença, a única pergunta de Deus, desde o começo até ao fim do mundo, é apenas esta: que fizeste do teu irmão (Gn 3, 4-12: Mt 25, 31-45)? O cento das preocupações do Deus de Jesus Cristo é a defesa das vítimas, a ponto de se identificar com elas: o que fizeste a um destes foi a mim que o fizeste! O mais interessante da encenação simbólica do tribunal da História é o seguinte: o encontro ou o desencontro com o Absoluto transcendente joga-se, de forma inequívoca, na imanência da pura gratuidade das atitudes e acções, em favor das vítimas da sociedade. De tudo o que conheço das expressões do fenómeno religioso é a única vez na qual a divindade se identifica com as suas criaturas.
Tomás de Aquino cunhou, a este respeito, uma formulação tão exemplar quanto esquecida: “Deus não é ofendido por nós a não ser quando agimos contra o nosso próprio bem, ou dos outros” (C.G., III, c.122). Insistiu, por outro lado, numa condição fundamental de toda a ética: “Só é livre quem faz o bem porque é bem e evita o mal porque é mal e não porque é um mandamento do Senhor (Cf. In 2Cor., 3,17 e par.). O afeiçoamento ao bem é interpretado, na sua teologia, como fruto do Espírito Santo que alimenta a própria raiz da liberdade.
 3. Antes e depois de Jesus Cristo e em áreas religiosas e culturais que nunca tiveram qualquer contacto com o seu testemunho, a palavra Deus ou algo equivalente não significava apenas idolatria, desfiguração do divino e do humano. Nos Actos dos Apóstolos é narrado um acontecimento extraordinário. Paulo, em Atenas, “inflamava-se-lhe o espírito de indignação com o espectáculo desta cidade cheia de ídolos”. Em vez de reagir como um fundamentalista, um dono da verdade absoluta, sente que tem de sair do seu registo judaico. Depara com outras culturas, outras filosofias, outras religiões. Será nas suas possíveis aberturas, e a partir delas, que encontrará caminho para a novidade de que é testemunha, Jesus Cristo ressuscitado. Até encontrou, no meio de toda aquela religiosidade e dos seus monumentos sagrados, “um altar com a inscrição: ao Deus desconhecido”. Aquele que adoreis sem o conhecer, é esse que eu vos venho anunciar.
Apresenta, depois, a sua visão do mundo e da criação como uma grande história da busca da divindade. Divindade a ser atingida, ainda que às apalpadelas, pois ela não está longe de nós. É nela, com efeito, que temos a vida, o movimento e o ser. E acrescenta: Assim, aliás, disseram alguns dos vossos – pois nós somos também da sua raça.
Não impõe uma doutrina. Torna-se um intérprete do que estava implícito nos seus poetas e filósofos. Se somos da raça de Deus, não devemos pensar que a divindade seja semelhante ao ouro, à prata, à pedra, esculpida pela arte e o engenho do ser humano. (Act. 17, 14-34).

Pertence à teologia desfazer confusões. Como a palavra Deus é usada para o melhor e para o pior, importa restituir-lhe a sua luz. Dizer Deus é dizer que a vida tem sentido. Continuaremos.

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