quarta-feira, 2 de julho de 2014

SOPHIA

Texto de Jorge Wemans (*)



(foto reproduzida daqui)


Sai agora teu funeral à rua. Uma pequena multidão te acompanha. Dentro em pouco descerás à terra. Não é justo.
Justo seria esperar pelo pôr-do-sol para então depor teu franzino corpo na orla branca da praia que amaste. Serena e lentamente, o mar te viria buscar, onda após onda, ao ritmo de quem respira quando ama. E te levaria para o lugar definitivo que só tu e ele sabem ser o teu.
Na claridade da manhã, uma inadvertida e espantada gaivota não saberia entender a gravidade daquele lugar. Nem que força, resistindo a qualquer bater de asas, a mantinha imóvel. Até que o grito de alegria da primeira criança na praia celebrasse o regresso da palavra… e a libertasse para o voo, livre de segredos e de sentidos de que nunca suspeitaria.

O que eu queria dizer-te nesta tarde
Nada tem de comum com as gaivotas.

Sei agora mais algumas coisas de ti

“A vida dos que partem
é sempre mais venturosa
que a dura e triste sina
dos que ficam
recortando nos lugares habituais
e nos momentos comuns
o espaço da ausência
daqueles que amam.”

Sei agora mais algumas coisas de ti.
Percebo que escreveste logo tudo da primeira vez. De jacto, por uma vez e para sempre, estavas toda ali. Nos primeiros versos, a que incansável e sempre renovada, voltaste vezes sem conta, já inscreveras tudo o que eras e serias.
De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.

Percebo que andaste comigo pela mão desde muito cedo. Acompanhas-me desde aquele momento adolescente em que comecei a fazer-me diferente daquilo para que me tinham feito. Falei a tua cristalina palavra porque ela dizia o que obscuramente procurava.
(…)
A presença dos céus não é a Tua,
Embora o vento venha não sei donde.

Os oceanos não dizem que os criaste,
Nem deixas o Teu rasto nos caminhos.

Só o olhar daqueles que escolheste
Nos dá o Teu sinal entre fantasmas.

Percebo por que nunca te resisti. Mesmo quando regressavas e eu pensava ter-te esquecido. Ou quando quis coisas que tu não querias. Quando disse acabado e velho o teu mundo. No tempo em que o sentimento atrapalhava a vida. Ou quando o mar foi só o sono do descanso. Mas nunca te resisti. Nunca te procurei. Chegaste sempre até mim pela mão de alguém.
(…)
Apenas sei que caminho como quem
É olhado amado e conhecido
E por isso em cada gesto ponho
Solenidade e risco


Tu nunca soubeste, mas foste santo-e-senha, ponte e porta, abrindo para intimidades e cumplicidades. Os rostos ganhavam outra proximidade quando nos diziam que também frequentavam a tua poesia. Olhares que nunca retivéramos fixavam-se na nossa memória, só porque, inesperadamente, encontrávamos neles a recordação dos teus poemas. Mais do que qualquer outro, tu eras a graça da amabilidade do mundo. E tornavas amáveis todos os que de ti se reclamavam.
Como não amar a mulher que se diz, mostrando o traço a lápis com que se detivera aqui:

MÃOS

Côncavas de ter
Longas de desejo
Frescas de abandono
Consumidas de espanto
Inquietas de tocar e não prender.

Como não me socorrer de ti, lendo:

PROMESSA

És tu a Primavera que eu esperava,
A vida multiplicada e brilhante,
Em que é pleno e perfeito cada instante.

[Sabes que não gaguejo quando recito poesia?]

Como evitar o desafio daquele que “no tempo da selva mais obscura, na noite densa dos chacais” te diz:
(…)
E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada

Meu canto se renova
E começo a busca
Dum país liberto
Duma vida limpa
E dum tempo justo

Que outra resposta senão:

Na clara paisagem essencial e pobre
Viverei segundo a lei da liberdade
Segundo a lei da exacta eternidade.

Combates, amores e amizades, tu os permitistes, tu os iluminastes.


Sabes, o mundo estragou-se, estragou-se muito nestes últimos anos. No Uganda os homens tornaram-se abjectos lobos. Os horrores da limpeza étnica regressaram à Europa. Dos céus voltam a cair em território europeu bombas mortíferas que rebentam com cinco décadas de paz. Manhattan sucumbe debaixo de um ódio cego, traiçoeiro, velhaco e assassino. No Iraque instala-se a guerra. Um muro iníquo, vergonhoso e violento cresce impunemente todos os dias, dividindo, qual sinal de todas as derrotas, a Palestina. A Europa envelhece e os outros morrem de fome. O Planeta protesta exangue, mas ninguém o ouve. O mundo porta-se mal.
Sabes, por vezes toma conta de mim aquela melancolia adolescente dos finais de tarde de Setembro, quando a tranquilidade do cair da noite nos avisava do fim de um tempo. Quando se tornava claro que as férias iam terminar, que nunca mais voltaríamos a ser os mesmos – mesmo que aos mesmos locais regressássemos. “Nos derniers baisers”. Voltaríamos, é verdade. Mas mais velhos, mais perros de sentimentos e mais presos a realidades que não eram dali e nos roubavam o sonho.
Ao olhar o mundo, sinto por vezes regressar essa melancolia: um certo modo de pensar, construir e viver a civilidade, a democracia, a justiça e a paz vai transformar-se num adolescente sonho de Verão? Num passado de cuja realidade passaremos a duvidar? Numa memória repudiada?
Preciso de te reler:

És tu que estás

És Tu que estás à transparência das cidades
Vê-se o Teu rosto para além dos bairros interditos.

O mal palpável próximo insistente
Parece tornar-Te evidente
Sobe do destino uma sede de Ti.
Não somos só isto que se torce
Com as mãos cortadas aqui.



Lisboa 4 de Julho de 2004

*texto publicado há dez anos no blogue Causa Nossa, aqui retomado hoje, no dia em que os restos mortais de Sophia entram no Panteão Nacional 

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