terça-feira, 11 de novembro de 2014

Vicente Gomez y Tojar – refugiado, emigrante, conspirador e pioneiro do protestantismo português


Templo da paróquia de São Pedro, da Igreja Lusitana, 
onde decorreu a sessão de segunda-feira 
(foto reproduzida daqui


Foi refugiado, emigrante e conspirador. Nasceu em Málaga (sul de Espanha), cerca de 1800, chegando a ser cónego da catedral, vivendo depois em várias cidades e países: Gibraltar, Tânger, Brasil e Inglaterra. Vicente Gomez y Tojar acabaria em Portugal, onde se tornaria o líder da primeira comunidade protestante portuguesa, depois de ter deixado o catolicismo e ter aderido às ideias liberais.
A sua história foi contada esta segunda-feira pelo pastor António Costa Barata, da Assembleia de Deus, numa sessão evocativa do primeiro culto da Capela para a Promulgação do Santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, a comunidade liderada por Gomez.
O acto fundador decorreu no dia 10 de Novembro de 1839 (fez ontem 175 anos), no terceiro andar do nº 81 da Rua Nova do Almada, em Lisboa (quase à esquina com as Escadinhas de São Francisco), perante 110 pessoas. Dessas, só 31 assinaram o registo. No culto inaugural, em que foi seguido o ritual anglicano da Igreja de Inglaterra, foi baptizado o filho de Vicente Gomez e da inglesa Anna Pratt, com quem o espanhol casara durante a sua permanência na Inglaterra, entre 1831 e 1833.
Contou o pastor Barata que Gomez estudou Filosofia, Medicina e Teologia. Em 1825, aderiu ao movimento liberal, decisão que lhe traria problemas e marcaria em definitivo a sua vida. E que o levaria mesmo, em 1826, a viver exilado e emigrado, entre Gibraltar, Tânger e o Brasil, onde esteve até meados de 1830.
Regressado a Gibraltar, Gomez envolveu-se numa conspiração liberal liderada por José Maria Torrijos, que tentou tomar a cidade de Málaga. Mas o levantamento foi descoberto e vários dos conspiradores fuzilados. Gomez escapou e decidiu ir para Inglaterra, onde foi reconhecido o seu grau de presbítero. Enviado para Portugal, com o apoio da Sociedade Missionária para a Europa, Gomez ficaria no país de 1833 a 1874, ano em que morreu.
Em Lisboa, a sua principal actividade foi a criação e liderança daquela que se tornaria a primeira comunidade protestante portuguesa – já havia no país comunidades inglesas e alemãs, por exemplo. A sua acção pastoral – que chegou a cidades como Setúbal, Porto e Viana do Castelo, entre outras – repartia-se essencialmente pela visitação aos fiéis, a celebração de baptismos e casamentos, a pregação do Evangelho e a realização de serviços fúnebres. Um dos casamentos que Gomez celebrou, recordou ainda António Costa Barata, foi o de outro ex-padre católico, Porfírio de Carvalho e Melo, com Maria Amália de Sousa Baptista, a 4 de Fevereiro de 1842.
O reverendo Gomez y Tojar e a sua mulher tiveram também contactos com a Sociedade Missionária Wesleyana (Metodista) e com a Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira. Mas a sua queda para a divulgação da Bíblia não seria muita, diz o pastor Barata: em Portugal, apesar de ser correspondente da Sociedade Bíblica, Gomez apenas distribuiu meia dúzia de Bíblias durante seis meses...
A par da sua actividade religiosa, Gomez continuou a relacionar-se com políticos liberais – entre os quais Quintino de Avelar, José Estêvão Coelho de Magalhães ou Latino Coelho. Em 1852, foi proibido de pregar na sua Capela. Não se sabe ainda a razão que terá levado à proibição, mas pouco antes fora promulgado um novo Código Penal, que estabelecia limites à acção de comunidades religiosas não-católicas.
Timóteo Cavaco, secretário-geral da Sociedade Bíblica Portuguesa, que interveio na mesma sessão, explica ao RELIGIONLINE que a ordem de proibir a pregação de Gomez pode ter tido a ver, sobretudo, com o episódio dos protestantes madeirenses, liderados pelo médico inglês Robert Kalley – a comunidade que, graças ao papel de benemérito e formador que o médico exercera, crescera exponencialmente, acabando perseguida e expulsa da Madeira e do país (a história é contada no livro Madeirenses Errantes, de Ferreira Fernandes).
Na Câmara dos Pares, chegou a haver acusações contra o “hespanhol apostata”, como, a 2 de Agosto de 1858, o marquês de Valada se referiu a Vicente Gomez y Tojar.
Decidido a prosseguir o ministério na clandestinidade, Gomez ainda faria polémica três anos depois: ao publicar um artigo no jornal O Português, houve quem se voltasse contra ele, chegando a haver mesmo quem o acusasse de ser o “Judas” que teria denunciado os conspiradores de Málaga.
Os apoios de que Vicente Gomez y Tojar dispunha foram rareando, até acabarem em 1861. O facto criou-lhe dificuldades de sobrevivência, a que a família também não escapou. Chegou a circular o boato, conta ainda Costa Barata, de que Gomez, já doente, teria voltado ao catolicismo. Mas o próprio, já sem fala, escreveu que queria ser inumado com as vestes distintivas de presbítero episcopaliano. A sua vontade foi cumprida.  
Um outro espanhol, Ângel Herreros de Mora (1815-1876), retomaria, em 1867, a tradição protestante episcopal, depois da diluição da comunidade que Gomez y Tojar criara. Mora teve um percurso muito semelhante ao de Gomez: padre católico, aderiu ao jansenismo em 1843, abandonando a Igreja de Roma em 1850.
Timóteo Cavaco citava outro pioneiro do protestantismo português, Eduardo Moreira, para recordar o percurso de Mora. Dizia ele: “enquanto se ia extinguindo obscuramente a missão do Cónego Gomez [...] nascia em semelhante penumbra a de D. Ângelo.”
Mora dinamizou a criação da chamada Igreja Evangélica Espanhola (e só por isso autorizada, por decreto do Marechal Saldanha, de 5 de Agosto de 1870). Mas o fundador viria a morrer seis anos depois. Só depois disso, já na década de 1880, e sob a liderança do pastor Henrique Ribeiro – antigo abade de Silgueiros, no bispado de Viseu, e irmão do político e literato oitocentista, Tomás Ribeiro – é que a comunidade se lançou na construção do primeiro templo protestante português construído de raiz – a Igreja de São Pedro, onde se realizou a sessão desta segunda-feira.

Para a construção, contribuiu a generosidade do benemérito John Cleif e a autorização e o parecer positivo de Frederico Ressano Garcia, então no cargo de Engenheiro-Chefe da Repartição Técnica da Câmara Municipal de Lisboa. “Homem de pensamento liberar e visão arrojada, este técnico que foi também deputado, par do reino e ministro, deu um notável contributo à criação de património público protestante em Portugal, o qual é infelizmente escasso passados 130 anos deste pontapé de saída auspicioso”, notava Timóteo Cavaco.

1 comentário:

Aquilino Rodrigues disse...

Bom artigo. Obrigado.