quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Este livro arde por dentro dos olhos

Livro



Na Bíblia abunda o sublime, inseparável do quotidiano? E Deus, anda ele entre as caçarolas? O texto bíblico abre para o infinito plural da interpretação? E o amor entre duas pessoas é profundamente espiritual?
O modo como José Tolentino Mendonça conjuga a Bíblia traduz um percurso raro, um labor original. O exegeta – e também poeta, autor de A Noite Abre Meus Olhos – é capaz de, num único texto, abrir horizontes, ver o que nunca se vira, cerzir pontas aparentemente soltas, desvendar sentidos recônditos. E fazer tudo isto devolvendo ao leitor um imenso prazer pelo texto.
A Leitura Infinita – Bíblia e Interpretação confirma o caminho iniciado em As Estratégias do Desejo (ed. Cotovia) e confirmado em A Construção de Jesus (Assírio & Alvim). A presente obra reúne textos de teologia e exegese bíblicas, alguns deles editados antes em publicações da especialidade, e agora revistos para este livro.
Não se pense que se trata de uma colectânea de textos avulsos sem outro nexo além do tema genérico. Bem ao inverso: há uma coerência que se aprofunda. A parte inicial faz um elogio da leitura narrativa do texto bíblico. Depois, o autor apresenta quatro temas fundacionais na Bíblia cristã: o escondimento e a revelação; a arte de amar; a cozinha, a mesa e a refeição; e a manifestação de Jesus. No final, há ainda três entrevistas, duas delas realizadas por quem assina estas linhas – facto que, espero, fique alheio ao que aqui se escreve.
Foi José Tolentino Mendonça quem revelou em Portugal a estratégia narrativa de aproximação ao texto bíblico. Os métodos de leitura da Bíblia – histórico-crítico, semiótico, de libertação, feminista, etc. – serviram, no último século e meio, para expurgar o texto da sua leitura mais tradicional ou, pior, fundamentalista. O método narrativo acrescentou-lhes um modo de olhar a Bíblia como um “jardim de lírios” da literatura, para utilizar a expressão de Oscar Wilde.
Um texto maior? Numa obra de 1946, sobre o realismo na literatura do Ocidente, Erich Auerbach fala da Odisseia e da Bíblia como dois paradigmas fundamentais. E, falando da Bíblia, escreve ainda Wilde: “Nem em Ésquilo nem em Dante, esses mestres supremos da ternura, nem em Shakespeare, o mais puramente humano de todos os grandes artistas, nem no conjunto das lendas e mitos celtas, onde a beleza do mundo é apresentada através de um nevoeiro de lágrimas (...), há alguma coisa que (...) possa considerar-se igual, ou mesmo aproximada...”

É este sublime texto literário – tantas vezes citado na música, na literatura, nas artes: “À Bíblia devemos tudo...”, escrevia Wilde – que José Tolentino Mendonça desvela. “A escritura era de tal modo santa que deixava de ser escritura. Os biblistas redescobrem agora que ela também é escritura sem perder a santidade.” E desvela-o como quem conta uma história, já que foi uma história contada que concebeu esse texto: “A Bíblia foi leitura antes de ser livro. E nela persistem marcas dessa gestação oral, puramente sonora; dessa recitação ininterrupta por gerações.”
Necessário se torna, por isso, regressar às histórias, à narratividade, pede o autor. É aqui que Tolentino fala de um texto que “emerge nele próprio”. E nesse aparecimento, o leitor é o sujeito principal, “elemento requerido, suposto e esperado pelo próprio texto”. A escritura bíblica cresce com quem a lê, escrevia Gregório Magno.
Não se julgue que a interpretação narrativa é uma opção neutra: a Bíblia deve “permanecer um livro perigoso”, escrevia Anne-Marie Pelletier. O texto sagrado é “geneticamente plural”, recorda Tolentino Mendonça. Desde o início, “os livros da Bíblia reagem entre si: relêem-se, apagam-se, opõem-se, confirmam-se (...) Quando se diz que a Bíblia não tem de ser interpretada e tem de ser lida à letra, está a negar-se, de certa maneira, a própria natureza desta palavra, que é uma palavra em elaboração, em reinterpretação. (...) O que existe são leituras. É preciso sentir que a palavra ama esconder-se.”
Verdade conhecida, mas pouco assumida. Daí que essa seja uma das ideias frequentes, surgidas como motes numa história. “O texto é textum: têxtil, textura, trama, tecelagem, tecido. Esta pluralidade é o único antídoto que previne contra as leituras fundamentalistas, unívocas e violentas.” O texto “permanece em aberto não por insuficiência, mas por excesso”. Ler a Bíblia “na pluralidade das traduções, das tradições, até mesmo das traições” não é senão “observação de um infinito” que possibilita “ampliar ainda os arquivos do espanto”.
Como quando o autor nos brinda com os capítulos sobre a sexualidade bíblica, onde anula qualquer carga moralizante da Bíblia: “A sexualidade é olhada pelo texto bíblico, desde o princípio, como um território privilegiado de descoberta e de construção do humano.” Ou acerca da presença de Deus entre as caçarolas da cozinha – expressão convocada por Teresa d’Ávila. Mais uma vez, não é apenas de beleza poética que se trata. “Na Bíblia abunda o sublime, mas soletrado assim num realismo de vida comum, inseparável do ordinário e do quotidiano. Passa também por aqui o seu singular fascínio.” Esta historicização do texto, escreve a propósito da sexualidade no Cântico dos Cânticos, é que desconstrói mitologias.
Também sobre o Cântico – mas poderia ser sobre a Bíblia toda – escreve Tolentino Mendonça: “As mãos ardem folheando este livro que pede para ser lido por dentro dos olhos, este livro humano e sagrado, este cântico anónimo que todos sentem seu, este relato de um sucesso e de um naufrágio ao mesmo tempo manifestos e secretos, esta ferida inocente, esta mistura de busca e de fuga, este rapto onde tudo afinal se declara, esta cartografia incerta, este estado de graça, este único sigilo gravado a fogo, este estandarte da alegria, este dia e noite enlaçados, esta prece ininterrupta onde Deus se toca.”
Este livro também nos arde por dentro dos olhos.

(Este texto foi publicado no Público a 25 de Julho de 2008, a propósito da primeira edição de A Leitura Infinita; o livro foi agora reeditado nas Paulinas, com mais dois textos do que a edição original, com os títulos: As imagens  como lugar da interrogação de Deus; e Vocabulário e gestos rituais do NT: pequeno guia para viajar no aberto.)

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