terça-feira, 1 de setembro de 2015

Jacques Gaillot, bispo virtual de Parténia: É bom haver grupos preocupados com a reforma da Igreja


Jacques Gaillot (foto reproduzida daqui)

O bispo francês Jacques Gaillot, demitido da sua diocese de Évreux (França), em Janeiro de 1995, foi esta tarde recebido pelo Papa Francisco no Vaticano.
Quer antes quer depois de ter sido forçado a deixar a sua diocese, Gaillot nunca abdicou do seu papel de bispo, de pastor, junto dos mais desfavorecidos: sem-abrigo, refugiados, pobres, desempregados, vítimas de tráfico humano estão entre as pessoas que ele vem apoiando desde há muito, quer pessoalmente quer na sua diocese virtual de Parteniacriada quando a internet era ainda embrionária.
No livro Deus Vem a Público (ed. Pedra Angularpubliquei uma entrevista com Jacques Gaillot (na realidade, uma síntese de duas entrevistas feitas em Maio de 2007 e Setembro de 1997, esta última realizada em conjunto com Manuel Vilas Boas).
Fica a seguir o texto:


Nascido a 11 de Setembro de 1935, Jacques Gaillot esteve em Portugal em 1997 e 2007. Depois de ter sido forçado pelo Vaticano a sair da diocese de Évreux, no Noroeste de França, em Janeiro de 1995, o bispo foi nomeado como responsável de Parténia, uma diocese extinta no século VII. Essa inexistência física levou-a a abrir uma página na internet, na qual escreve um catecismo “alternativo”, troca correspondência ou facilita o acesso a páginas de outras instituições e associações.
Pensa que foi uma razão política que levou o Vaticano a demiti-lo de Évreux. Assumindo-se como um homem livre, Jacques Gaillot acusa o então ministro do Interior francês, Charles Pasqua, de estar por detrás da sua destituição. Gaillot era conhecido pelas suas posições polémicas sobre temas como o preservativo, a homossexualidade, a pobreza, a exclusão, a falta de habitação ou o desarmamento. Opiniões que o levavam a ser presença constante na comunicação social, o que também não agradaria aos poderes – da Igreja e do Estado.
Ao contestar, num livro muito crítico, as restrições que o ministro propunha na política de imigração, Gaillot assinou a própria demissão. Sem desistir: abriu a página na internet e ali fala com toda a gente. Com esta nova diocese “sem fronteiras”, voltar à sua diocese seria, agora, um passo atrás.
Jacques Gaillot – que continua no activo como bispo e sentindo-se parte da Igreja, ao contrário do que algumas pessoas possam imaginar – fez o serviço militar na Argélia, o que o levou a interessar-se pela não-violência. Ordenado padre em Março de 1961, trabalhou em várias estruturas de formação, até ser nomeado bispo de Évreux em Maio de 1982.
Tem publicados dezena e meia de títulos, entre os quais, em português, Conversas no Adro da Igreja (ed. Notícias/Casa das Letras) e No que Eu Acredito (ed. Piaget).


Com que Igreja sonha?
Uma Igreja do terreno, da base, de homens e mulheres abertos aos outros, que acolhem e trabalham com os outros. Cristãos e cristãs que estão na metidos na massa humana, com outros. Os cristãos são o rosto de pessoas que não suportam a injustiça, que se batem pela paz. E levam a mensagem, o fermento do evangelho.


Esse desejo nasce também da sua experiência como bispo de Parténia? 
Sim, há muita gente que se sente excluída da sociedade, da Igreja, mas que continua viva e a bater-se no interior dos organismos – da Igreja ou não – e que transporta a esperança do evangelho.

Após estes anos depois da sua demissão de Évreux, que balanço faz? Continua a sentir-se como bispo católico?
Agradeci a Roma o que vivo. Estou desligado de tudo o que é institucional e decididamente com as pessoas. Se fosse bispo de Évreux, não estaria aqui neste momento. Tenho esta possibilidade de estar com as pessoas. Noutros tempos, eu tê-las-ia encontrado como podia, mas não era fácil uma vez que era bispo. É para mim uma grande alegria, uma grande esperança. Não pensava, na minha vida, fazer o que faço hoje.

Como olham hoje para si as pessoas?
Vêem-me como um bispo que, justamente, conheceu a exclusão. E dizem: “Um bispo que é como nós, que foi posto de lado, tal como nós. Perdemos o trabalho, somos desconsiderados – e há alguém da Igreja que é como nós e pode compreender-nos.” Portanto, sou um sinal para muitos excluídos, hoje. Se estivesse integrado, como bispo, numa diocese, não seria esse sinal para tais pessoas.

Isso significa que continua a estar ao lado dos sem-abrigo, dos marginalizados?...
Sim. Estou com os sem-papéis, com os que não têm alojamento, com os presos políticos, com quem vive angustiado, que sobrevive na sociedade. Depois de Évreux, é uma segunda viva, um segundo povo.

Os grupos que o apoiam são vistos como contestatários da Igreja oficial. O que é mais importante nestes grupos: a contestação, a reivindicação ou outra coisa?
Creio que é bom haver grupos, na Igreja, que estejam preocupados pela reforma da Igreja: a democracia, o lugar das mulheres... Creio que, para reformar a Igreja, é preciso estar ligado ao mundo da exclusão. É bom que também haja grupos que, em relação à instituição Igreja, digam que não é aceitável deixar as mulheres de lado, não haver práticas democráticas, etc. É importante que esses grupos existam.

São grupos que colocam questões internas como o celibato, a ordenação das mulheres, a moral sexual. São questões importantes para discutir?
É bom que haja grupos para isso, mas não são as minhas questões. As minhas são as questões da sociedade: a injustiça, a paz, a ecologia. Mas é legítimo que haja cristãos que queiram a reforma da Igreja e continuem a contestar. Sobretudo, se são cristãos inteligentes e muito comprometidos, os bispos devem contar com eles.

Coloca a questão da sociedade porque é esse o grande desafio para a Igreja e para os cristãos?
A Igreja é relativa à sociedade. Se não houvesse sociedade, não haveria Igreja. A evolução profunda da sociedade faz com que a Igreja deva mudar. A dificuldade para a Igreja de hoje é a modernidade. Tudo está centrado no indivíduo, que é autónomo e que deve fazer o seu caminho, que deve encontrar os seus valores, o seu sentido, que é responsável da sua vida. E se lhe dizem que há uma lei natural, que diz isto e aquilo, ele não aceita numa lei que vem de fora.
O indivíduo conduz a sua vida, isso é a modernidade. Essa é uma das dificuldades da Igreja e da sociedade de hoje, em Espanha, em Itália, etc., porque na modernidade o indivíduo tem direito à felicidade, à realização de si mesmo, ser verdadeiro consigo mesmo.

Há igrejas protestantes que avançaram por esses caminhos, mas também enfrentam crises profundas. O problema é a coerência dos cristãos?
A santidade de uma Igreja – Católica ou Protestante – é a sua ligação com os oprimidos, com os que são excluídos. Isso é o importante. A Igreja nunca é ela mesma sem os pobres. O importante para a Igreja não é que ela seja bem considerada pelos poderosos, pela gente importante, é que ela seja verdadeiramente acolhida pelos pobres, pelos pequenos. É essa a saúde, a força da Igreja

Pessoalmente, como se definiria: um bispo contestatário, um cristão rebelde?
Não, sou um bispo, creio que fui libertado pelo evangelho, fui seduzido pela liberdade de Cristo. Sou um bispo que não está aí sobretudo por causa da doutrina, para chamar à lei, para defender a instituição, mas para despertar as pessoas para aqueles que estão à beira do caminho, aos que sofrem. São os seres humanos que estão em primeiro lugar. Estou aí por eles.

Considera-se um desempregado da Igreja? 
Nem pensar. Posso dizer-lhe que os meus dias estão bem ocupados. E que, em Paris, estou com os excluídos: famílias sem alojamento, jovens sem trabalho, estrangeiros sem documentação...

É esse o trabalho de um bispo?
O trabalho de um bispo é estar onde o povo sofre, onde o futuro do homem está em perigo. Por isso é bom que eu esteja perto de outros, junto dos excluídos.

O que pensa da utilização do preservativo? Foi também um tema falado a propósito da sua demissão...
É uma questão que me parece secundária, perante o problema da sida...

Apenas para a sida?
O preservativo é um meio de luta contra a sida. Há a continência, há a fidelidade e há o preservativo. É preciso que cada um se sinta responsável e tome os seus meios, na sua situação, para não semear a morte e para respeitar a vida.

Mas o preservativo é também um meio de contracepção?
Não se deve tomar o preservativo como um meio de contracepção, mas antes como esse respeito do outro e da vida. E acho esquisito que a Igreja se fixe nesse aspecto. Esse deve ser um problema que deve ser gerido simplesmente, colocando as pessoas perante a sua responsabilidade.

O que pensa do aborto?
Penso mal: o aborto é matar a vida, por isso sou contra o aborto.

É um crime?
É um mal, é uma desgraça. Encontrei jovens raparigas que tinham abortado e que me disseram: ‘É a pior coisa que pode acontecer a uma mulher’. Mas admito que há situações de angústia, sobretudo de jovens mães, e que se possa recorrer ao aborto. Em todo o caso, não se deve julgá-las. Penso também que qualquer país possa tentar fazer uma lei para resolver este quadro de miséria.

Quem deve decidir entre fazer ou não fazer o aborto?
Em primeiro lugar, os interessados.

Nas matérias de moral sexual, critica-se muito a Igreja por se intrometer na vida privada. O que pensa disso?
Em geral, é verdade que a Igreja está demasiado presente nas questões da sexualidade e seria melhor que estivesse mais no terreno da justiça. Penso que o papel dos responsáveis da Igreja é, talvez, esclarecer, as consciências das pessoas, de esclarecer um pouco as suas decisões.

A homossexualidade não é aceite pela Igreja...
Há pessoas que são homossexuais. Existem e sofrem de discriminação – na família, no trabalho, na religião. Isso deve interrogar a Igreja, para que não os excluamos. Já há muitos excluídos na sociedade, é preciso que a Igreja não faça o mesmo. Eu sempre defendi para que essas pessoas sejam acolhidas na Igreja, sejam escutadas na Igreja, que tenham também o seu lugar na Igreja.

Alguma vez presidiria a um casamento de homossexuais?
Nunca. Penso que é lamentável que se utilize a palavra “casamento” para os homossexuais. Casamento tem por base um homem e uma mulher, é o casamento da diferença, não é preciso utilizar este termo em relação aos homossexuais. Isso não é favorável nem a uns nem a outros.

No Catecismo da Igreja reafirma-se o acolhimento às pessoas, aos homossexuais, mas condena-se o acto. O que pensa disso?
Tento nunca julgar as pessoas, temos o dever de as acolher. E se não as acolhemos, não podemos reclamar-nos do evangelho. É preciso compreender o sofrimento, as suas dificuldades. É preciso que essas pessoas possam viver e, também na Igreja, ter responsabilidades. Dizer que alguém é homossexual é eximir-se a responsabilidades.

Na história, a Igreja defendeu a guerra justa. Há alguma guerra justa?
Não posso juntar a palavra ‘justa’ à palavra ‘guerra’, não é possível. Para mim é aplaudir o fogo. Portanto, não falaria de guerra justa, e sempre estive contra a guerra...

Defende a não-violência...
Absolutamente. Foi durante a guerra da Argélia que descobri a não-violência. Tornei-me um militante não-violento.

A não-violência é um princípio ainda praticável ou trata-se de uma utopia que acabou com Gandhi e Luther King?
A não-violência não é alternativa à violência, que tudo regulamenta. A não-violência é uma opção, não se decreta. É uma atitude, é um espírito, é preciso que a maior parte possível das pessoas seja não-violenta, para que se possa oferecer resistência. Dito isto, existem na sociedade estruturas de violência que fazem com que estruturas injustas suscitem reacções de violência. A miséria suscita situações de violência, mas a violência do Estado e da sociedade existe primeiro. Se se suprimir esta violência, talvez se suprima a outra.
A violência gera a violência e não tem solução, é um impasse. Por exemplo, na Argélia: é claro que é o governo militar que está relacionado com aquela violência. Não é possível que, em Argel, onde há tantos quartéis, não se faça esta relação. A França apoia o governo argelino, vendendo material militar. Temos coisas aqui a fazer: ao nível diplomático, comercial, ou da venda de armas. É assim que se começa.

Tem uma página na internet. Isso é uma vingança do silêncio que lhe foi imposto?
Estou na Internet porque fui aconselhado por amigos. Diziam-me ‘É importante, porque se és bispo de Parténia, esse é o meio que te convém’. Esse é um modo de comunicar, para mim muito interessante, porque assim posso franquear todas as fronteiras...

... E comunicar no deserto?
O deserto está prestes a florir, porque por todo o lado há comunicações que se estabelecem e comunicar é viver. Por isso, tento fazer florir o deserto.

O direito de opinião existe na Igreja?
Há uma opinião pública na Igreja, é preciso que todos os cristãos tenham oportunidade de manifestar a sua opinião.

Está de acordo com a ordenação das mulheres?
O que se passa na sociedade, hoje em dia, repercute-se na Igreja. Há uma exigência feita por todos, pelas mulheres, para que haja uma parceria homens-mulheres, tanto na sociedade como na Igreja. Estamos numa Igreja onde os responsáveis são homens, celibatários e, muitas vezes, idosos. E é uma batalha a ganhar, que haja mulheres investidas de responsabilidade. É uma complementaridade, uma riqueza. Temos um ministério de modelo masculino, é necessário inovar, é preciso procurar, mas isso acontecerá.

Quando?
Não sei, mas acontecerá. Talvez eu não o veja, mas não se pára a maré que sobe.

O seu catecismo na internet é uma alternativa ao Catecismo da Igreja Católica?
É uma outra abordagem, sim. Um bispo, normalmente, na sua diocese, é convidado a fazer o seu catecismo. O Concílio de Trento pediu, aliás, que cada bispo fizesse o seu catecismo. Então fiz o meu. Mas fi-lo, partindo das perguntas das pessoas, não de categorias religiosas, dizendo ‘é isto, imponho-vos aquilo’, mas construindo isso em conjunto, a partir da experiência dos grupos, das comunidades, perguntando: ‘como fazeis?’ Portanto, são pessoas de culturas diferentes, de países diferentes, que constroem em conjunto. Depois se verá...

Há muitas pessoas que lhe escrevem através da internet?
Sim, claro, são milhares de pessoas, sobretudo jovens.

O que lhe dizem?
Primeiro, manifestam-se felizes por comunicar. As pessoas estão muitas vezes sozinhas, se são cristãos falam da Igreja e uma vez que tenho internet, estão ali, em rede... Depois, sobretudo, põem questões sobre o futuro, sobre a humanidade, a injustiça do mundo, do sentido da vida, duma busca religiosa – há tantas religiões, as pessoas procuram...

O que pensa do celibato eclesiástico?
É um sinal importante dado por Jesus e pelo evangelho. Para mim, é também um sinal importante que eu escolhi. Mas penso que, ao mesmo tempo, para os padres, deve ser concedida a liberdade de escolher. Hoje, na cultura, na evolução do mundo, é uma coisa que deve estar na liberdade de decisão.

Qual é o futuro da Igreja?
O futuro da Igreja está em ela voltar-se para a humanidade, para a sociedade. As questões prioritárias são as questões da humanidade. A saber, as questões da injustiça, do combate pela paz, da salvaguarda da criação. Esse é o grande objectivo: que as igrejas, na sua acção ecuménica, se voltem nessa direcção.

E o seu futuro? Aceitaria regressar a uma diocese?
Estou bem como estou. Não tenho ambições pessoais. No fundo, agradeço o que se passou comigo, pelo caminho que me foi dado, ao mesmo tempo apaixonante e rude.


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