terça-feira, 5 de janeiro de 2016

A revolução franciscana (5) – As periferias que elegeram o Papa

Sob o título genérico A revolução franciscana, publiquei no Jornal de Notícias, durante o mês de Dezembro, oito trabalhos sobre o Papa Francisco, que tentam fazer um balanço do que tem sido este ainda curto mas intenso pontificado. Este é o quinto trabalho da série. 


Monumento final - Lampedusa, 2011, do artista cubano Kcho
(ilustração reproduzida daqui)

Das periferias existências às geográficas, a sugestão do Papa tornou-se uma linha orientadora do seu pontificado

“A Igreja é chamada a sair de si mesma e ir para as periferias, não só geográficas, mas também existenciais: as periferias do mistério do pecado, da dor, da injustiça, da ignorância e desprezo relativamente à religião, do pensamento e de toda a miséria.”
Foi por causa desta frase, e da ideia das periferias, que o então arcebispo de Buenos Aires (Argentina), Jorge Mario Bergoglio, foi eleito Papa, a 13 de Março de 2013. Nas reuniões preparatórias do conclave, Bergoglio fez uma intervenção, baseada em algumas notas que, depois, o cardeal Jaime Ortega, de Havana (Cuba), lhe pediu para divulgar.
Nesses tópicos, Bergoglio acrescentava ainda: “Pensando no próximo Papa: [deve ser] um homem que, a partir da contemplação e adoração de Jesus Cristo, ajude a Igreja a sair de si para as periferias existenciais, que a ajude a ser mãe fecunda que vive da ‘doce e reconfortante alegria de evangelizar’.”
Desde então, a ideia das periferias tem marcado o pontificado de Francisco, tornando-se uma linha orientadora destes quase três anos, desde que foi eleito. E ela tem diferentes traduções, consoante a realidade a que se referem: o Papa fala de periferias existenciais para aludir a situações como a solidão, as mães solteiras, os homossexuais, os divorciados; refere os mais pobres, as vítimas de guerras, migrantes, reclusos ou refugiados no âmbito das periferias económicas ou sociais.
Também nas viagens ele tem dado prioridade às periferias geográficas. Não por acaso, a primeira saída do Papa foi a um lugar emblemático da desesperança humana e da profunda crise dos valores europeus: a ilha de Lampedusa, a sul de Itália, um dos lugares onde chegam refugiados em busca de uma vida digna – ou cadáveres dos que morrem na travessia do Mediterrâneo. Aí, gritou o Papa contra a “globalização da indiferença”, um tema que retomou na sua mensagem para o próximo Dia Mundial da Paz (1 de Janeiro), cujo texto foi divulgado esta semana (ver página ao lado).
Depois de Lampedusa, um novo mapa-mundi nasce com as viagens do Papa (que ontem mesmo fez 79 anos). No centro, são colocados alguns dos países mais pobres do mundo ou esquecidos no contexto internacional: Albânia, Sri Lanka, Filipinas, Equador, Bolívia, Paraguai, Uganda, Quénia, República Centro-Africana. Outros são países onde o catolicismo é (ultra-)minoritário ou está sujeito a forte pressão político-religiosa (Turquia, Israel, Palestina, Albânia, Sri Lanka, Cuba). E, mesmo em realidades mais favoráveis, como o Brasil, Coreia do Sul ou Estados Unidos, o programa privilegia encontros com pessoas sem-abrigo, presos, pobres...
As periferias eclesiais são uma outra tradução desta ideia orientadora do Papa Bergoglio. Desde logo, pelo acolhimento de grupos, pessoas ou dinâmicas até agora mais postos de lado pela hierarquia católica: Francisco encontrou-se com Gustavo Gutierrez, o “pai” da teologia da libertação latino-americana; promoveu a beatificação do arcebispo Óscar Romero, emperrada há anos no Vaticano; e participou no encontro dos Movimentos Populares latino-americanos, ao lado de Evo Morales, na Bolívia, defendendo “trabalho, terra e tecto” para todos...
A ideia das periferias eclesiais estende-se mesmo a quem não crê. A 22 de Maio de 2013, dizia ele, na sua homilia da manhã, na Casa de Santa Marta, que a salvação é para todos: “O Senhor redimiu-nos a todos, a todos, (...) não só aos católicos. A todos. ‘Padre, então, e aos ateus?’ Também a eles. (...) Encontrar-se fazendo o bem. ‘Mas eu não acredito, padre, eu sou ateu!’ Mesmo assim, faz o bem: encontramo-nos aí!’” (Papa Francisco, A Verdade é um Encontro, ed. Paulinas).
Sair ao encontro das periferias, de quem foi posto de lado pelo centro (seja qual for esse centro), é condição indispensável para a própria sobrevivência da Igreja: “Se a Igreja não sair de si mesma para evangelizar torna-se auto-referencial e, em seguida, fica doente “, dizia o ainda cardeal Bergoglio, no pé-conclave.
Nessa intervenção, o então cardeal antecipava muitas das críticas que, durante estes três anos, viria a fazer a muitas das formas organizativas da Igreja: “Os males que, ao longo do tempo, se verificam nas instituições eclesiais têm raiz na auto-referencialidade, uma espécie de narcisismo teológico.” E acrescentava: “No Apocalipse Jesus diz que ele está à porta e chama. Obviamente, o texto refere-se ao bater de fora da porta para entrar ... Mas penso também nas vezes em que Jesus bate do lado de dentro para que o deixemos sair para fora. A Igreja auto-referencial busca Jesus Cristo dentro de si e não o deixa sair.”


De Lampedusa à mensagem da paz – A globalização da indiferença

Lampedusa foi a primeira saída do Papa, a 8 de Julho de 2013, menos de quatro meses depois da sua eleição. À ilha chegam constantemente refugiados à procura de trabalho (ou, pelo menos, de paz) na Europa. Por vezes, os naufrágios na travessia do Mediterrâneo fazem com que as pessoas cheguem a Lampedusa (ou a outras ilhas gregas ou italianas) já como cadáveres. Por isso a missa que o Papa ali celebrou foi pelas vítimas dos naufrágios.
“Onde está o teu irmão? A voz do seu sangue clama até Mim”, disse o Papa na homilia, citando o texto bíblico do livro do Génesis, quando Caim mata o seu irmão Abel. E acrescentava: “Neste mundo da globalização, caímos na globalização da indiferença. Habituamo-nos ao sofrimento do outro, não nos diz respeito, não nos interessa, não é responsabilidade nossa!”
Depois de Lampedusa, o Papa insistiu nesta ideia várias vezes. Na mensagem para o Dia Mundial da Paz, que se assinala a 1 de Janeiro, volta a referir o tema. Com o título “Vence a indiferença e conquista a paz”, o Papa apela a que as pessoas não se rendam “à resignação nem à indiferença”.
Dizendo que “a primeira forma de indiferença na sociedade humana é a indiferença para com Deus, da qual deriva também a indiferença para com o próximo e a criação”, pede que pessoas e Estados façam “gestos concretos, actos corajosos a bem das pessoas mais frágeis da sociedade, como os reclusos, os migrantes, os desempregados e os doentes”. E cita concretamente o perdão da dívida dos países mais pobres como uma decisão que os mais ricos deveriam tomar.


O Papa Francisco em Lampedusa, com uma cruz 
feita de restos de embarcações destruídas, usadas por refugiados 
(foto reproduzida daqui)

Mudanças e aberturas

As mudanças no Colégio Cardinalício são outro sinal da atenção do Papa a realidades periféricas ou esquecidas. A cúpula da Igreja Católica também muda.

O mais jovem cardeal está em Tonga
Poderiam os católicos do pequeno arquipélago de Tonga, no Pacífico Sul, pensar que um dia teriam um cardeal? Sendo apenas uns 15 por cento entre pouco mais de 100 mil habitantes (que residem em 52 ilhas das 177 que compõem o arquipélago), a minoria católica de Tonga viu o seu bispo ser nomeado cardeal no consistório de Fevereiro deste ano (na mesma altura do patriarca de Lisboa). O cardeal Soane Patita Paini Mafi é, ao mesmo tempo, o mais jovem membro do colégio cardinalício (completa amanhã 54 anos).

Um colégio em mudança
Também outros pequenos países como Cabo Verde ou Burkina Faso, bem como a Costa do Marfim ou Myanmar tiveram cardeais escolhidos pelo Papa Francisco. No próximo ano, uma dezena de cardeais atingirá a idade limite para poder votar num conclave, o que faz com que sejam necessários mais uns 15 novos cardeais para preencher as vagas que entretanto já existem (o número de cardeais-eleitores de um novo Papa deve ser de 120, segundo a constituição do Vaticano que regula o processo). Embora ainda não seja claro se o Papa avança ou não para um novo consistório de criação de cardeais, é de prever que, se isso não acontecer em 2016, já deverá acontecer em 2017. Nessa altura, Francisco terá nomeado perto de meia centena de cardeais, o que aumentará muito a sua influência no conclave que escolherá o seu sucessor. Sabendo que muitos cardeais já existentes alinham com Francisco, a sua influência é já notória.

Ásia, o grande horizonte
A nomeação do bispo Soane Mafi como cardeal é apenas um dos sinais da preocupação do Papa Francisco com as periferias geográficas do catolicismo, na linha das viagens à Coreia, ao Sri Lanka e às Filipinas – ou ainda à Terra Santa (Jordânia, Palestina e Israel). Foi na Ásia que nasceu o cristianismo, mas é neste continente que a fé cristã mais obstáculos tem encontrado: seja pelas perseguições de que é vítima, seja pela presença forte de religiões como o islão, do hinduísmo ou do budismo. Por isso, as viagens asiáticas do Papa traduzem essas várias preocupações, bem como o desejo de intensificar a convivência inter-religiosa e a resolução pacífica dos conflitos.

Rússia e China, os destinos mais desejados
Nem João Paulo II nem Bento XVI (como já antes Paulo VI) conseguiram ir à Rússia nem à China. E percebe-se que esses dois países seriam um grande objectivo para qualquer Papa. Também para Francisco, que tem intensificado o diálogo com a Igreja Ortodoxa (predominante na Rússia) e que já em várias ocasiões se referiu à China (onde os cristãos são duramente perseguidos).

Uma abertura com 50 anos
A ideia de que a Igreja deve continuar a abrir-se cada vez mais ao mundo é retomada pelo Papa na sua mensagem para o Dia Mundial da Paz, que se assinala no próximo dia 1 de Janeiro. Escreve Francisco, recordando os 50 anos do Concílio Vaticano II: “O ano de 2015 foi um ano especial para a Igreja, nomeadamente porque registou o cinquentenário da publicação de dois documentos do Concílio Vaticano II que exprimem, de forma muito eloquente, o sentido de solidariedade da Igreja com o mundo. O Papa João XXIII, no início do Concílio, quis escancarar as janelas da Igreja, para que houvesse, entre ela e o mundo, uma comunicação mais aberta. Os dois documentos – Nostra Aetate [sobre a liberdade religiosa] e Gaudium et Spes [sobre a Igreja no mundo actual] – são expressões emblemáticas da nova relação de diálogo, solidariedade e convivência que a Igreja pretendia introduzir no interior da humanidade.”

Texto anterior no blogue


Sem comentários: