sábado, 13 de fevereiro de 2016

Francisco e Cirilo pedem acção urgente para evitar nova guerra mundial

Encontro histórico em Havana termina com declaração conjunta a apelar à comunidade internacional para travar perseguições a cristãos

O Papa Francisco e o patriarca Cirilo, da Igreja Ortodoxa Russa, querem uma "acção urgente da comunidade internacional para prevenir nova expulsão dos cristãos do Médio Oriente". Ao mesmo tempo, pedem à comunidade internacional que "faça todos os esforços possíveis para pôr fim ao terrorismo valendo-se de ações comuns, conjuntas e coordenadas", mas de modo "responsável e prudente". E os cristãos devem rezar para que Deus "não permita uma nova guerra mundial".
A declaração conjunta dos dois líderes religiosos, naquele que é o primeiro encontro entre o bispo de Roma e o patriarca de Moscovo em mil anos de separação das duas Igrejas, foi assinada ontem, cerca das 17.00, em Havana (22.00 de Lisboa). No documento, Francisco e Cirilo dizem que, ao levantar a voz em defesa dos cristãos perseguidos, exprimem igualmente a sua "compaixão pelas tribulações sofridas pelos fiéis doutras tradições religiosas, também eles vítimas da guerra civil, do caos e da violência terrorista".
(texto para continuar a ler aqui, de onde também é reproduzida a foto abaixo; a seguir, um segundo texto sobre a história e as razões da separação entre católicos e ortodoxos)




O patriarca Cirilo, de Moscovo, e o Papa Francisco, 
ontem em Havana

Política e religião, razões de um cisma de mil anos

Foram razões políticas que levaram à excomunhão mútua entre os cristãos do Ocidente e do Oriente, em 1054, mesmo se havia já divergências teológicas importantes. Depois, o modo de entender a fé cavou mais fundo a separação. Hoje, a política e os modos de entender a fé cristã aproximam os dois grandes ramos do cristianismo, mesmo se subsistem importantes factores de divisão em ambos os campos.
Durante os primeiros séculos, o cristianismo dos dois lados da Europa foi seguindo modos diferentes de se entender a si mesmo e de compreender a presença cristã na sociedade política. Mas a primeira grande divergência aparece ainda no século VIII, com a crise iconoclasta, a querela relativa às imagens. Nela “intervieram a teologia, a disciplina e a polícia”, como recorda o teólogo alemão Hans Küng, na sua monumental obra “O Cristianismo. Essência e História” (ed. Círculo de Leitores/Temas e Debates).

Em 725 e 726, o imperador Leão III, de Bizâncio, fez vários discursos apoiando um movimento que pretendia a destruição das imagens, com isso agravando as discussões já existentes. E mandou mesmo destruir uma imagem de Cristo na porta do seu palácio, muito venerada pela população.
A questão teve sucessivos episódios nos séculos seguintes, agravando o fosso entre as duas metades da Europa. A liturgia foi também seguindo caminhos diferentes. No século XI, as questões políticas – com Roma e Constantinopla a discutir sobre quem tinha a herança do Império Romano – deram um carácter definitivo à separação, com a excomunhão mútua do enviado do Papa a Constantinopla, o cardeal Humberto Candida, e do patriarca Miguel Cerulário.
“O ponto mais baixo das relações mútuas” ainda estaria para vir, com as cruzadas, como nota Küng. Massacres de latinos às mãos dos bizantinos, o cerco e saque de Constantinopla às mãos dos cruzados e a imposição da hierarquia latina à Igreja oriental durante meio século foram factores a agravar o cisma – e permanecem no inconsciente colectivo de muitos cristãos ortodoxos como uma ferida aberta.
As divergências teológicas que vinham de trás aprofundaram-se a partir daí: os cristãos orientais admitem os ícones mas não as imagens em escultura, as liturgias tornam-se cada vez mais distintas, a organização da Igreja torna-se mais sinodal e autónoma no Oriente, e mais centralizada na figura do Papa, no Ocidente latino – o reverso desta medalha é que, no Oriente, cada Igreja, não dependente de um poder religioso centralizado, pode ficar mais dependente do poder político do momento.
Surge também uma profunda divergência teológica: para o cristianismo latino do Ocidente, o Espírito Santo procede de Deus Pai e de Jesus Cristo; para o cristianismo oriental ortodoxo, ele procede apenas de Deus Pai.
Hoje, o papel do Papa é ainda motivo de divergência e as diferenças teológicas permanecem, mas já não têm o peso de outrora. Os papas João Paulo II e Francisco admitiram rever o lugar do bispo de Roma, como passo para uma Igreja que alie a unidade e uma maior autonomia das igrejas locais. A excomunhão mútua foi retirada em 1964, a aproximação pessoal, institucional e teológica é cada vez maior. A política veio de novo baralhar a questão, em questões como a reivindicação, por parte dos católicos orientais, dos bens que o regime comunista lhes tirou para entregar à Igreja Ortodoxa; ou com a maior complacência da Igreja Ortodoxa russa para com situações como a invasão russa da Ucrânia.
O encontro de ontem, em Havana, é um passo de gigante para aplanar um milénio de zangas.

(texto publicado também na edição deste sábado do DN)

Texto anterior no blogue
O encontro de Francisco com o patriarca Cirilo será mesmo histórico - uma antecipação do encontro que decorreu esta sexta-feira em Havana

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