segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Timothy Radcliffe em Lisboa: escutar a consciência dos leigos e a santidade do corpo

O antigo mestre geral da Ordem dos Pregadores (Dominicanos), Timothy Radcliffe, estará no próximo fim-de-semana em Lisboa, onde fará duas conferências, sobre temas que lhe são caros e sobre os quais tem desenvolvido muita reflexão. A primeira é no sábado, 28, com o título How can the conscience of the Laity be heard? (Como pode a consciência dos leigos ser escutada?). Iniciativa conjunta do Instituto São Tomás de Aquino (ISTA) e do movimento Nós Somos Igreja, a conferência será proferida em inglês mas estará disponível um texto com a tradução em português.



Timothy Radcliffe (foto reproduzida daqui)

No domingo, 29, o tema será The holiness of the body (A santidade do corpo), numa iniciativa do ISTA. Proferida em espanhol, a conferência também terá disponível uma tradução em português. Decorrem ambas a partir das 15h30 no Convento de São Domingos de Lisboa (R. João Freitas Branco, 12; metro: Alto dos Moinhos).
Biblista e teólogo, Radcliffe é considerado um dos mais originais autores católicos contemporâneos, tendo sido o único dominicano da província inglesa a exercer o cargo de mestre-geral da Ordem (entre 1992 e 2001), desde a sua fundação, em 1216. Nas Paulinas estão publicados vários livros seus: As Sete Últimas Palavras, Ir à Igreja, Porquê?, Ser cristão para quê?, e Imersos na vida de Deus. No sábado, 28, após a conferência, serão apresentados dois novos títulos de fr. Timothy: Na Margem do Mistério, e Via-Sacra – Carregou as nossas dores.

Em 1999, numa visita enquanto mestre-geral da Ordem à província portuguesa, fiz uma entrevista a Timothy Radcliffe, entretanto publicada na íntegra no livro Deus Vem a Público – Entrevistas Sobre a Transcendência (ed. Pedra Angular/Sistema Solar).
Reproduzo a seguir o texto.

Timothy Radcliffe: Temos de estar nos lugares onde as pessoas sofrem

Os dominicanos e os cristãos têm que estar onde as pessoas sofrem. Deus está para lá das concepções pessoais. E o desafio da Igreja na Europa é a construção de comunidades numa sociedade fragmentada. Ideias e Timothy Radcliffe, que foi mestre geral dos dominicanos entre 1992 e 2001. Naquele cargo, o padre Radcliffe dizia que gastava muito tempo a viajar – oito meses no ano – para “estar em contacto com os irmãos: a unidade da ordem depende da escuta dos irmãos”.
Nascido em Londres (Inglaterra), a 22 de Agosto de 1945, Timothy Peter Joseph Radcliffe tomou o hábito dominicano aos 20 anos e foi ordenado padre em Oxford, em 1971. No capítulo geral da ordem, realizado no México em 1992, foi eleito mestre geral da ordem fundada por S. Domingos em 1216. Autor de várias obras sobre espiritualidade, vida religiosa e sexualidade, colaborador regular de várias publicações (entre as quais The Tablet e National Catholic Reporter), continua a ser solicitado em todo o mundo.
Na visita canónica que fez à província portuguesa dos dominicanos, em 1999, queria perguntar aos seus confrades: “Onde estão as pessoas a fazer perguntas? Quais são as perguntas” que se fazem à Igreja? “E como respondemos nós a essas perguntas?”
Vários textos da sua autoria estão publicados em edição policopiada pelas Monjas Dominicanas do Mosteiro de Santa Maria, no Lumiar (Lisboa).

Costuma visitar lugares onde os dominicanos enfrentam situações sociais graves de guerra ou injustiça. Qual é a relação desse trabalho com a missão original da ordem?
TIMOTHY RADCLIFFE – Fomos fundados para ser pregadores. Para isso, não se pode falar às pessoas sem as ouvir primeiro. Para nós, é um grande desafio: como estamos presentes nos lugares onde as pessoas pensam? Como estamos nos lugares onde as pessoas fazem perguntas? Tem que se estar nos lugares onde as pessoas sofrem, onde as pessoas são pobres. E isto é um desafio para um mundo onde a pobreza se torna cada vez mais dolorosa.


Qual é a grande falha do cristianismo europeu?
A grande dificuldade tem sido a de construir comunidade nesta sociedade. A descoberta do indivíduo é uma das belezas da cultura ocidental e uma verdadeira riqueza para todo o mundo. Mas basta olhar por esta janela para ver como é fragmentada a cultura que se pode produzir: todos esses pequenos apartamentos, muita dessa gente vivendo sozinha... Não diria que é o nosso erro, mas o nosso desafio...

Quais são os caminhos para lutar pela justiça e pela paz?
Há muitos caminhos. Às vezes é preciso tomar posição: na altura própria, o conselho geral dominicano e eu escrevemos um comunicado muito claro contra os bombardeamentos do Iraque pelos Estados Unidos e – envergonho-me de o dizer – o meu próprio país. Gastei muitos dos meus anos a protestar – contra o “apartheid”, contra as bombas nucleares. Mas não é suficiente acusar, ou estar de fora, apontando o dedo.
Uma coisa que se pode fazer é dialogar com os que tomam decisões. Outro modo é desenvolver uma estratégia que traga as questões de direitos humanos à opinião pública. Outro é desenvolver pequenos projectos. Há um irmão dominicano no Ruanda que trabalha com crianças que sofrem de trauma de guerra, cujos pais morreram. Nunca vi um artigo sobre ele, mas de um modo silencioso ele trabalha com as crianças.

Os dominicanos têm uma grande pluralidade de opções religiosas ou sociais, por vezes opostas. Como é possível?
Muitos dominicanos vêm com a paixão da verdade. Mas não têm que ter a mesma visão da verdade. Nem têm que ter a mesma ideologia ou a mesma visão da espiritualidade dominicana. E isso foi assim desde o início.
O que nos deveria juntar era a cultura de diálogo. O mistério de Deus está para lá das minhas concepções. Posso ter a minha teologia e devo aprofundá-la sempre. Mas não podemos nunca absolutizar a nossa própria abordagem teológica, não podemos apanhar o nosso Deus e dizer-lhe: “Apanhei-te.”

Escreveu sobre as diferentes orientações sexuais, mesmo entre os dominicanos, trabalhou com pessoas doentes de sida. Não são atitudes comuns na Igreja...
Trabalhei com pessoas com sida porque estavam a morrer. Eram excluídos, não queria saber se eram homossexuais ou toxicodependentes. Um dia, na comunidade, perguntei se um doente podia lá ficar. E a comunidade respondeu-me: “Primeiro: sim; segundo, nunca mais tens que perguntar”.
Sobre a questão da orientação sexual: é evidente que todo o ser humano é chamado por Deus às mesmas regras de viver casto. O que eu escrevi é que a pessoa não deve viver obcecada pela orientação sexual. Isso é o que a maior parte dos bispos pensa, talvez nunca o tenham dito.

Quando se fala dos dominicanos na História, fala-se da Inquisição. Como foi possível ter havido responsabilidade dos dominicanos na Inquisição? Foi pela paixão da verdade de que falou?
Essa é a pergunta que fazemos. Já houve um simpósio em Roma, com muitos dominicanos, organizado pelo dominicano Georges Cottier.
Primeiro, temos que compreender: porquê? porquê? Segundo, diria que, se houver verdadeira paixão pela verdade, não se pode ser intolerante. Terceiro, tem que se reconhecer que, na mesma época, muita gente morreu na Inglaterra, sem Inquisição.

Era um tempo de transição na sociedade europeia, com muitas transformações sociais – peste, divisão social, divisão religiosa –, em que era muito fácil encontrar vítimas e matá-las. Não podemos desculpar a Inquisição e devemos assumir a nossa responsabilidade. Mas temos que reconhecer que, na época, era o mais justo tribunal na Europa, onde muita gente era morta.

Publicação anterior no blogue
Sobre o futebol e outros suicídios do jornalismo (ou como jornalistas e católicos são tão parecidos) - intervenção no 4º Congresso de Jornalistas Portugueses


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