quarta-feira, 14 de junho de 2017

O primeiro Dia Mundial dos Pobres: “O amor não admite álibis”

“O amor não admite álibis: quem pretende amar como Jesus amou, deve assumir o seu exemplo, sobretudo quando somos chamados a amar os pobres.” Esta é uma das afirmações centrais da mensagem do Papa Francisco para o I Dia Mundial dos Pobres, por ele instituído na carta Misericordia et miseracom que assinalou o final do ano da misericórdia, em Novembro de 2016.


(foto reproduzida daqui)

O texto é significativamente datado de ontem, 13 de Junho, memória de Santo António, e o título – “Não amemos com palavras, mas com obras” – é retirado da primeira carta de São João: “Meus filhinhos, não amemos com palavras nem com a boca, mas com obras e com verdade”. E, ao recordá-la, o Papa sugere que “a misericórdia, que brota por assim dizer do coração da Trindade, pode chegar a pôr em movimento a nossa vida e gerar compaixão e obras de misericórdia em prol dos irmãos e irmãs que se encontram em necessidade”.
No documento, o Papa insiste no “escândalo” da pobreza, pede uma “nova visão da vida e da sociedade”, diz que os pobres “não são um problema” mas antes um recurso para “acolher e viver a essência do Evangelho”, aponta sugestões concretas para viver o Dia Mundial e apresenta o Pai Nosso como uma oração que implica “partilha, comparticipação e responsabilidade comum”.
A data escolhida pelo Papa para este Dia Mundial dos Pobres é o XXXIII Domingo do tempo comum (o penúltimo do ano litúrgico), que este ano cairá a 19 de Novembro. Com a sua instituição, o Papa pretende “estimular, em primeiro lugar, os crentes, para que reajam à cultura do descarte e do desperdício, assumindo a cultura do encontro”. Mas também quer que “todos, independentemente da sua pertença religiosa”, se abram “à partilha com os pobres em todas as formas de solidariedade, como sinal concreto de fraternidade”. E acrescenta: “Deus criou o céu e a terra para todos; foram os homens que, infelizmente, ergueram fronteiras, muros e recintos, traindo o dom originário destinado à humanidade sem qualquer exclusão.”
Aos problemas colocados pela pobreza e pela existência de pobres “é preciso responder com uma nova visão da vida e da sociedade”, escreve o Papa na mensagem. “Causa escândalo a extensão da pobreza a grandes sectores da sociedade no mundo inteiro. Perante este cenário, não se pode permanecer inerte e, menos ainda, resignado”, escreve o Papa.
O fenómeno da pobreza, acrescenta, descrevendo realidades concretas, “interpela-nos todos os dias com os seus inúmeros rostos vincados pelo sofrimento, a marginalização, a opressão, a violência, as torturas e a prisão, pela guerra, a privação da liberdade e da dignidade, pela ignorância e o analfabetismo, pela emergência sanitária e a falta de trabalho, pelo tráfico de pessoas e a escravidão, pelo exílio e a miséria, pela migração forçada”. A pobreza tem, ainda, “o rosto de mulheres, homens e crianças explorados para vis interesses, espezinhados pelas lógicas perversas do poder e do dinheiro. Como é impiedoso e nunca completo o elenco que se é constrangido a elaborar à vista da pobreza, fruto da injustiça social, da miséria moral, da avidez de poucos e da indiferença generalizada!”
Para dar um “contributo eficaz para a mudança da história, gerando verdadeiro desenvolvimento, é necessário escutar o grito dos pobres e comprometermo-nos a erguê-los do seu estado de marginalização”. Mas os pobres não ficam de fora dos apelos do Papa: eles não devem perder “o sentido da pobreza evangélica que trazem impresso na sua vida”.
Lembrando as primeiras comunidades cristãs e os relatos dos Actos dos Apóstolos, Francisco diz que o “serviço aos pobres” constitui “um dos primeiros sinais com que a comunidade cristã se apresentou no palco do mundo”. Só possível porque os primeiros cristãos compreenderam que a sua vida, enquanto discípulos de Jesus, “se devia exprimir numa fraternidade e numa solidariedade tais que correspondesse ao ensinamento principal do Mestre que tinha proclamado os pobres bem-aventurados e herdeiros do Reino dos céus (cf. Mt 5, 3)”.

“Encontrá-los, fixá-los nos olhos, abraçá-los”

A atenção aos pobres deve ser feita de atenção a cada pessoa concreta. “Continuam a ressoar de grande atualidade estas palavras do santo bispo Crisóstomo: ‘Queres honrar o corpo de Cristo? Não permitas que seja desprezado nos seus membros, isto é, nos pobres que não têm que vestir, nem O honres aqui no tempo com vestes de seda, enquanto lá fora O abandonas ao frio e à nudez’”, escreve o Papa, para concluir: “somos chamados a estender a mão aos pobres, a encontrá-los, fixá-los nos olhos, abraçá-los, para lhes fazer sentir o calor do amor que rompe o círculo da solidão. A sua mão estendida para nós é também um convite a sairmos das nossas certezas e comodidades e a reconhecermos o valor que a pobreza encerra em si mesma.”

Os pobres não devem ser olhados apenas como “destinatários duma boa obra de voluntariado, que se pratica uma vez por semana, ou, menos ainda, de gestos improvisados de boa vontade para pôr a consciência em paz”, exemplifica ainda o Papa argentino. “Estas experiências, embora válidas e úteis a fim de sensibilizar para as necessidades de tantos irmãos e para as injustiças que frequentemente são a sua causa, deveriam abrir a um verdadeiro encontro com os pobres e dar lugar a uma partilha que se torne estilo de vida. Na verdade, a oração, o caminho do discipulado e a conversão encontram, na caridade que se torna partilha, a prova da sua autenticidade evangélica.”
Uma outra referência bíblica, de novo retirada dos Actos dos Apóstolos – “Vendiam terras e outros bens e distribuíam o dinheiro por todos, de acordo com as necessidades de cada um” – mostra ainda, diz o Papa, “com clareza, como estava viva nos primeiros cristãos tal preocupação”. E acrescenta: “O evangelista Lucas – o autor sagrado que deu mais espaço à misericórdia do que qualquer outro – não está a fazer retórica, quando descreve a prática da partilha na primeira comunidade. Antes pelo contrário, com a sua narração, pretende falar aos fiéis de todas as gerações (e, por conseguinte, também à nossa), procurando sustentá-los no seu testemunho e incentivá-los à acção concreta a favor dos mais necessitados.”
O texto da mensagem recorda ainda o ensinamento dado, “com igual convicção, pelo apóstolo Tiago, usando expressões fortes e incisivas na sua Carta: ‘Ouvi, meus amados irmãos: porventura não escolheu Deus os pobres segundo o mundo para serem ricos na fé e herdeiros do Reino que prometeu aos que O amam? Mas vós desonrais o pobre. Porventura não são os ricos que vos oprimem e vos arrastam aos tribunais? (…) De que aproveita, irmãos, que alguém diga que tem fé, se não tiver obras de fé? Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem de alimento quotidiano, e um de vós lhes disser: “Ide em paz, tratai de vos aquecer e matar a fome”, mas não lhes dais o que é necessário ao corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se ela não tiver obras, está completamente morta’ (2, 5-6.14-17)”.
Reconhecendo os “momentos em que os cristãos não escutaram profundamente este apelo, deixando-se contagiar pela mentalidade mundana, o Papa recorda também os “homens e mulheres que, de vários modos, ofereceram a sua vida ao serviço dos pobres”. Entre todos, diz, “destaca-se o exemplo de Francisco de Assis, que foi seguido por tantos outros homens e mulheres santos, ao longo dos séculos” e cujo testemunho “mostra a força transformadora da caridade e o estilo de vida dos cristãos”.

Pai Nosso, a oração dos pobres

A pobreza, define o Papa na mensagem, “é uma atitude do coração que impede de conceber como objetivo de vida e condição para a felicidade o dinheiro, a carreira e o luxo. Mais, é a pobreza que cria as condições para assumir livremente as responsabilidades pessoais e sociais, não obstante as próprias limitações, confiando na proximidade de Deus e vivendo apoiados pela sua graça. Assim entendida, a pobreza é a medida que permite avaliar o uso correto dos bens materiais e também viver de modo não egoísta nem possessivo os laços e os afectos”.
Para a celebração deste primeiro Dia Mundial dos Pobres, o Papa faz sugestões concretas: manifesta o desejo de que as comunidades cristãs se empenhem na criação de muitos momentos de encontro e amizade, de solidariedade e ajuda concreta”, sugere que se convidem pobres e voluntários “para participarem, juntos, na Eucaristia deste domingo” e que os crentes se aproxime dos pobres que vivem no seu bairro, acolhendo-os “como hóspedes privilegiados” à mesa.
Francisco recorda ainda que “o Pai Nosso é a oração dos pobres”: pedir o pão “exprime o abandono a Deus nas necessidades primárias da nossa vida” e o que Jesus ensina naquela oração “exprime e recolhe o grito de quem sofre pela precariedade da existência e a falta do necessário”. O Pai Nosso é, ainda, “uma oração que se exprime no plural: o pão que se pede é ‘nosso’, e isto implica partilha, comparticipação e responsabilidade comum. Nesta oração, todos reconhecemos a exigência de superar qualquer forma de egoísmo, para termos acesso à alegria do acolhimento recíproco.
O Papa conclui, exprimindo outro desejo: “Que este novo Dia Mundial se torne, pois, um forte apelo à nossa consciência crente, para ficarmos cada vez mais convictos de que partilhar com os pobres permite-nos compreender o Evangelho na sua verdade mais profunda. Os pobres não são um problema: são um recurso de que lançar mão para acolher e viver a essência do Evangelho.

(O texto completo da mensagem, em português, pode ser lido aqui)

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