quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Fátima, 100 anos, de Maio a Outubro (5) – A oscilação política e as guerras de Fátima à volta da paz

Depois de Maio, podemos voltar a parte do muito que se publicou sobre Fátima e que ajudará a sistematizar informação e elementos para vários debates sobre o fenómeno, que importa agora aprofundar.
Hoje, dia da peregrinação aniversária de Setembro, trago aqui dois textos sobre a relação de Fátima com a política, ambos publicados no Expresso: um, publicado a 6 de Maio na Revista E, sobre a oscilação da relação com a política, ao longo do primeiro século de Fátima. Outro, publicado dia 12 de Maio no Expresso Diário, sobre a questão específica da guerra e da paz.
Este é o quinto trabalho da série, que terminará a 13 de Outubro. Os textos já publicados podem ser lidos nestas ligações:


A oscilação política de Fátima – ou o poder da fé
(Foto à direita, em baixo: António Pedro Ferreira, reproduzida daqui)

Neste século, Fátima foi terreno de conflito entre o catolicismo tradicional e a República, afirmação do desejo de paz contra a participação de Portugal na guerra, “escola” do nacionalismo católico durante o Estado Novo e da mensagem anticomunista, lugar de divulgação de mensagens contra a guerra colonial, centro do catolicismo português depois da instauração da democracia.

Cem anos e muitas polémicas depois, o momento presente de Fátima não revela nenhum “motivo de atrito” nem de “utilizações abusivas entre o Estado e a Igreja”, ao contrário do que aconteceu durante este primeiro século de Fátima. A conclusão, expressa pelo historiador José Miguel Sardica na “Enciclopédia de Fátima”, traduz a realidade de ter sido o regime democrático a estabilizar a relação do Estado com a Igreja, no que também a Fátima diz respeito.
Ao longo destes 100 anos, a história do fenómeno faz-se também a partir do que foi a sua relação com o Estado e a política. E pode concluir-se pela oscilação, pois Fátima foi sendo várias Fátimas: o relato ingénuo dos primeiros três anos, acerca das visões das três crianças (e sobretudo de Lúcia) em 1917, coincidindo com a primeira adesão popular e as críticas severas dos republicanos; o reconhecimento do fenómeno como “autêntico” por parte da diocese de Leiria; as novas narrativas que Lúcia acrescenta, a partir da década de 1930 e até 1945; a relação de respeito e aproveitamento mútuo entre Fátima e o Estado Novo; a oposição surda das populações à guerra colonial e as ambiguidades de um santuário que falava de paz mas se silenciava perante um regime que coartava a liberdade e conduzia a guerra (ver texto “As guerras à volta da paz”); o esvaziamento do discurso anticomunista após a queda do Muro de Berlim...
(O texto pode continuar a ser lido aqui)



As guerras de Fátima à volta da paz

Panfletos contra a guerra colonial distribuídos em Fátima, uma carta entregue discretamente a um ex-secretário do Papa João XXIII, padres angolanos a pensar “ocupar” a nunciatura do Vaticano em Lisboa durante a visita de Paulo VI a Fátima... A questão da guerra e da paz esteve muito presente em Fátima desde o início, quando as crianças disseram que a visão lhes anunciara o fim da Grande Guerra.

A única vez que Joana Lopes foi a Fátima foi em 1967, na altura da visita do Papa Paulo VI. O objectivo era ela e José Manuel Galvão Teles, membros da então Junta Central da Acção Católica (um organismo coordenador desses movimentos de leigos católicos) entregarem ao antigo secretário do Papa João XXIII, Loris Capovilla, uma carta dirigida a Paulo VI. Nela se descrevia a situação política em Portugal, marcada pela guerra colonial e pela falta de liberdade.
“O objectivo foi conseguido”, recorda agora. Pouco tempo depois, conforme combinado em Fátima, o cartão recebido do Vaticano a dizer “Missão cumprida”, assinalava isso mesmo. Mas já alguns dias antes da visita do Papa, como recorda no livro Entre as Brumas da Memória (ed. Âmbar), Joana Lopes tinha ido, com Nuno Teotónio Pereira e o mesmo Galvão Teles, à nunciatura do Vaticano, falar com monsenhor Maximilien de Furstenberg, então representante do Vaticano em Lisboa. “Era ainda uma tentativa de que o Papa não viesse” ou, pelo menos, que tivesse em conta a situação política do país, explica, recordando o gesto.

Joana Lopes, doutorada em Filosofia na Universidade Católica de Lovaina e que trabalhou como engenheira de sistemas, directora e administradora na IBM, afastou-se entretanto da Igreja, desiludida com o silêncio dominante na hierarquia católica sobre a ditadura e a guerra colonial. Mas, quando foi à audiência na nunciatura, “o ponto era ainda que Portugal estava muito isolado, o que para a oposição ao regime era positivo”. Vindo Paulo VI a Fátima, “isso avalizaria o regime e era essa a ideia que queríamos transmitir.”
Perante o anúncio da visita, feito pelo próprio Papa em Roma, no dia 3 de Maio, os grupos da oposição católica mobilizaram-se num conjunto de iniciativas. Uma delas, recorda Joana Lopes, foi esse documento, com dezenas de assinaturas, entregue em Fátima. Nuno Teotónio Pereira fez uma fotocópia da carta, mas “escondeu-a tão bem que a perdeu”, o que constituía um desgosto para ele, conta ela.

A paz, uma mensagem “primordial”

A questão da guerra era uma das que mais mobilizava os católicos na oposição à ditadura. E foi um dos argumentos centrais das movimentações à volta da visita de Paulo VI. O próprio Papa anunciara que viria a Fátima como “peregrino da paz” e, na sua homilia da missa em Fátima, repetiu a palavra “paz” por dez vezes.
Outro dos episódios foi a preparação de uma “ocupação” pacífica da nunciatura (a representação diplomática do Vaticano em Lisboa) por parte de um grupo de padres angolanos exilados em Portugal. Entre eles, estavam Joaquim Pinto de Andrade (que participara na fundação do MPLA), Alexandre do Nascimento (que chegaria a cardeal e arcebispo de Luanda) e Zacarias Kamuenho (que viria a ser arcebispo de Lubango). Nascimento acabou por decidir não participar, o que abortou a iniciativa, pensada para envolver todos – ou ninguém.
Apesar dessas movimentações, Joana Lopes recorda, no seu livro, que muitos militantes católicos ficaram desiludidos com a visita de Paulo VI e acabaram por se afastar da Igreja. Bruno Cardoso Reis, investigador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE, que tem estudado a história do fenómeno de Fátima, considera que os grupos de militantes católicos foram aqueles que, no curto prazo, mais derrotados saíram com a viagem do Papa a Portugal.
“Eles eram a vanguarda das reformas propostas pelo Concílio Vaticano II e as distâncias do Papa em relação a Salazar não foram suficientes. Por isso, muitos desistiram”, diz o investigador. Apesar dessas polémicas e dos equívocos, Paulo VI veio dar ao santuário “uma centralidade renovada e consagrar uma viragem na mensagem primordial de Fátima, no sentido da paz”, diz o investigador, coautor do livro Fátima – Lugar Sagrado Global (ed. Círculo de Leitores). Essa viragem ia “no sentido de alinhar não pelo diapasão do combate aos totalitarismos, sobretudo o comunista, mas do combate à guerra tout court”, escrevia Bruno Reis, num estudo publicado na revista História (Outubro 2000), sobre os primeiros cinquenta anos de Fátima.
Em 1973, um outro episódio à volta de Fátima e da guerra foi a distribuição de panfletos contra o conflito que Portugal mantinha em Angola, Guiné e Moçambique. Os folhetos foram distribuídos a partir de um grupo informal de católicos que se reunia em Lisboa, designado “Terceiros Sábados” (sobre essa rede, pode ver-se a reportagem publicada no Expresso/Revista E de 22/08/2015).

Salvar os seus, não o Império

Vinha do início a relação da mensagem de Fátima com as questões da guerra e da paz. Na Enciclopédia de Fátima, Manuel Linda (actual bispo das Forças Armadas) escreve que, “a par da penitência, da conversão e da reconciliação”, pode dizer-se que a paz é um tema “absolutamente nuclear no fenómeno de Fátima”.
Os acontecimentos da Cova da Iria dão-se durante o ano de 1917, já em plena Grande Guerra de 1914-18. Desde 1916, milhares de jovens portugueses vinham sendo mobilizados para as frentes de combate, em França e na Flandres. As populações confrontavam-se com “a precariedade da vida perante a situação de uma guerra que as pessoas aceitavam, mas perante a qual procuravam uma protecção de natureza religiosa e divina”, diz o historiador António Matos Ferreira, num estudo no livro A Senhora de Maio (ed. Temas e Debates/Círculo de Leitores).
Nos primeiros relatos dos videntes, a visão promete, em 13 de Outubro, que a guerra acabaria “nesse dia”. Depois, Lúcia corrige a informação, dizendo que a pressão das pessoas para saber dos seus filhos, maridos ou familiares a levou a dizer isso, em vez de “em breve”. De qualquer modo, nas seis vezes em que as crianças relatam ter visto Nossa Senhora, as perguntas sobre a guerra, o seu eventual fim e o regresso dos rapazes portugueses foram uma constante, a provar que o tema era uma preocupação maior das populações.
De tal modo assim foi que a guerra acabou por ser um outro factor de oposição do catolicismo popular à I República. “Ao contrário do que aconteceu em França, com a união sagrada em torno da guerra contra a Alemanha, o que se passa em Fátima, com as perguntas e afirmações sobre o fim da guerra, agudiza o conflito” entre católicos e República, comenta Bruno Reis.
O que acontecia na Cova da Iria era também um desafio ao regime, tendo em conta o facto de haver uma manifestação pública religiosa (não autorizada pela Lei de Separação) e de se falar da defesa da paz, observa o investigador. A mensagem de paz da visão de Fátima acaba por pôr em causa o esforço de guerra do Governo republicano de Afonso Costa, acrescenta. A ponto de Tomás da Fonseca, que viria a ser um grande crítico de Fátima, falar do fenómeno como uma “conspiração jesuítica e alemã”.
Na década de 1930, a Guerra Civil de Espanha e, depois, o início da II Guerra Mundial, viriam a marcar de novo o discurso fatimita sobre a questão – neste caso, aliado também à questão do anticomunismo. O Papa Pio XII, que atravessa o período da II Guerra Mundial, não queria deixar o argumento da paz apenas entregue à esquerda política, observa Bruno Reis. Por isso, uma das suas iniciativas é organizar, em 1951, um congresso sobre a paz, presidido por Giovanni Montini, o futuro Papa Paulo VI.

Com a guerra colonial em que Portugal entra a partir de 1961, Fátima convoca de novo a questão da paz. O santuário era, já, uma “escola popular de nacionalismo católico”, como diz Bruno Reis. Mas ninguém controlava completamente o fenómeno, que acabava por ser uma manifestação de um problema sério: as pessoas iam a Fátima rezar para que os seus mais próximos voltassem sãos e salvos da guerra (ou que nem sequer partissem...). E isso traduzia uma coisa simples, observa ainda o investigador: as populações católicas estavam preocupadas “com a salvação dos seus entes queridos e não com a salvação do Império”...

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