domingo, 28 de janeiro de 2018

Irmã Luísa Maria (1927-2018): um silêncio, uma presença, um sorriso

  
A irmã Louise-Marie, no mosteiro de Santa Maria, das Monjas Dominicanas, em 1996 
(foto de Luís Vasconcelos reproduzida do livro Vidas de Deus na Terra dos Homens)

Era alguém que, com a sua vida, falava do despojamento, da ternura e da entrega. A irmã Luísa Maria (Mary Alice Tobin, de baptismo), que integrava a comunidade do Mosteiro de Santa Maria, das Monjas Dominicanas, em Lisboa, morreu este sábado, 27 de Janeiro. Tinha 90 anos, completados a 3 de Setembro último (nascera nos Estados Unidos em 1927) e estava em Portugal há seis décadas, tendo integrado o mosteiro dominicano de Fátima e, depois, o de Lisboa. O seu funeral realiza-se esta segunda-feira, em Fátima.
A irmã Luísa Maria era uma mulher livre, um silêncio que se tornava presente pelo sorriso, disse este domingo, na eucaristia de corpo presente, o padre José Tolentino Mendonça. No mosteiro lisboeta, lugar de tranquilidade situado entre uma via rápida, prédios de habitação e escolas, Luísa Maria (ou Louise-Marie) foi, com as restantes irmãs da comunidade, o esteio de uma proposta que aliava interioridade e acolhimento, reflexão e debate.
Uma proposta que, durante largos anos, se concretizou nos Encontros do Lumiar: uma vez por mês, aos sábados, uma conferência seguida de debate construiu um património espiritual, teológico, bíblico e cultural raro no catolicismo português. Nos desugeria um cristianismo fundado nas suas raízes mais profundas, nos seus grandes místicos e mestres espirituais, e com uma atenção acurada à actualidade e aos sinais do tempo presente.
Por estar mais perto das pessoas, a irmã Luísa Maria dizia que gostava mais de estar no mosteiro de Lisboa do que no de Fátima. “A comunidade monástica deve estar inserida, viver com o povo, mantendo cada uma a sua identidade.”
No livro Vidas de Deus na Terra dos Homens (ed. Círculo de Leitores, 2000), publiquei uma reportagem sobre o mosteiro, resultante de dois textos publicados no Público (em 3 de Março de 1996 e 12 de Abril de 1998). Fica a seguir a reprodução dessa reportagem.

MÃOS DE AMOR E DE INVENÇÃO

Trabalham apenas o suficiente para viver: colagem de ícones, bolachas, compotas, bordados. São mãos de gestos de amor e invenção permanente. Mas o essencial é a contemplação e a oração. Deus, esse mistério. Estão em Lisboa, no meio da cidade, e às vezes têm que esperar o toque de alvorada do quartel vizinho para começar a rezar. Vivem em clausura, mas esta é apenas para se darem um sítio, nunca para se separarem das pessoas. Ficou para trás esse tempo, quando as grades não permitiam sequer beijar pais e irmãos.

A irmã Madalena ainda se recorda que esteve 13 anos sem ir a casa. Era a família que a ia visitar ao Mosteiro de Campanhã, no Porto. Os afectos trocavam-se apenas pelos olhos, as saudades morriam nas mãos. “Nas grades nem sequer cabiam umas mãos de criança, não podíamos dar as mãos.”
Mãos. As mesmas que hoje tecem o linho e bordam os panos e as toalhas que a irmã Madalena, 60 anos, semeou e teceu, ainda miúda, em casa. Juntamente com sua irmã – de sangue, de vida religiosa e, nesta manhã, também de trabalho – Maria Soledade. O pente do tear ainda foi feito pela avó. O linho, foram as duas desencantá-lo às arcas da família, em Riba de Mouro, Monção. E trouxeram-no para o Mosteiro de Santa Maria das Monjas Dominicanas, na Quinta do Frade, ao Lumiar, em Lisboa.
Os primeiros tempos foram muito difíceis. “Diziam logo que nunca mais saíamos, que estávamos mortas para o mundo”, recorda Maria Soledade, 68 anos. “Fizemos muito jejum, passámos alguma fome.” Vantagens? “O jejum faz bem. Encontrámos velhinhas com 80 anos, lúcidas, que nos diziam que os cemitérios estavam cheios de estômagos cheios.”
Na Quaresma, por exemplo: o pequeno-almoço era cevada sem açúcar, com um pouco de pão. E naquele tempo, a procuradora, a freira que tomava conta da economia da casa, ia para o refeitório pesar os gramas que, por dia ou por refeição, cabiam a cada irmã. 




Livro de cantos do mosteiro para o tempo de Quaresma

Tudo mudou. As regras, que o espírito mantém-se. “Não mudou a caridade fraterna, a vida em comum, o carinho. E isso marcou muito desde o princípio, porque encontrámos outra família.” 
As mãos, essas, vão poder, “se Deus quiser”, voltar a abraçar o pai de ambas. Dia 1 de Outubro fará 100 anos. Foi padeiro, em Sintra, da rainha D. Amélia. Assistiu à invasão do palácio pelos republicanos. Teve pena de ver calcar os escudos da rainha. É viúvo desde os 81 anos, levanta-se todos os dias às oito da manhã, ouve rádio e todos os dias faz a barba, apesar de ter cegado entretanto. 
A irmã Madalena mostra, entusiasmada, os bordados desenhados na toalha. Diz os preços, baratos para o mercado, um dos factores da sobrevivência do convento. Conta, convicta, a vida resumida em poucas frases. “Nós somos pessoas, não somos uma categoria à parte. Dentro destas paredes e de uma certa modéstia, Nosso Senhor também deu qualidades. O Concílio [Vaticano II] veio abrir as portas. Agora o mundo é diferente. Há 30 anos, não prometia tanto. As coisas melhoraram muito, há mais generosidade dos jovens. Como há muito de bem e como a vida é mais fácil, também há muito mal: há 30 anos não se falava em droga que destrói os jovens.”

O coração


A irmã Luísa Maria, ao fundo à esquerda, durante uma oração no mosteiro, 
com as irmãs  Maria João e Maria Domingos 

“Deus, vinde em nosso auxílio.” Às vezes, as monjas têm de esperar que termine o toque de alvorada no quartel da Alameda das Linhas de Torres para começar a oração de laudes. Não foi o caso às sete da manhã de hoje, já terminara o despertar militar. O quartel e uma escola são vizinhos que se fazem presentes pelos toques. Do clarim ou da campainha.
É Quarta-feira de Cinzas, terminou o intervalo do Carnaval, “chegaram os dias da penitência”, recorda o texto bíblico. Já é dia claro, manhã fria, céu forte de azul, quando se reza a hora intermédia, pouco depois das nove. “Regressai a mim, com todo o coração, eu sou um Deus de ternura”, cantam as monjas. “Eu não desejo a morte de ninguém, diz o Senhor Deus”, lêem, citando o profeta Ezequiel.
“Deus, vinde em nosso auxílio.” A oração marca, ritualiza, intervala o dia. Às sete, às nove, ao meio-dia e meia, às seis e meia da tarde e às nove da noite. “Elevo os meus olhos para os montes, de onde me virá o auxílio?” A cítara perfuma os salmos e os hinos, o silêncio remete para o essencial. O essencial, dizia o principezinho de Saint-Éxupéry, “é invisível aos olhos, só se vê bem com o coração”. “Dá-nos, Senhor, um coração novo.”
O coração da irmã Madeleine, 62 anos, ficou mais cheio quando passou oito anos em África. É um coração que ri quando se apresenta, não como canadiana, mas como “québécoise”. “Gostaria que o Quebeque fosse mais conhecido como uma província francesa”, explica, mais a sério. As mãos não param, entretidas na preparação da massa que, à tarde, se transformará em apetitosas, gulosas bolachas de manteiga.
Em Portugal há dois anos e meio, o tempo mais intenso da sua vida de dominicana passou-o em África. “Desde a minha infância que lá queria ir.” Ainda esteve 20 anos num mosteiro no Quebeque. Foi, depois, para o Burundi durante oito anos e para os Camarões mais dois. “Quando cheguei, tive a impressão de que chegava a casa.” Em África, as pessoas não entendiam muito bem essa noção de clausura. Por isso, não havia um portão fechado como aqui em Lisboa. “A clausura é para nos dar um sítio, mas não para nos separar das pessoas.”
Com ela concorda a irmã Louise-Marie, 68 anos, americana do estado de Nova Iorque. Está ao lado, trabalhando com a máquina de amassar. E está em Lisboa desde 1975, depois de ter estado no Mosteiro de Fátima. “Gosto muito de Lisboa, está mais perto do povo. A comunidade monástica deve estar inserida, viver com o povo, mantendo cada uma a sua identidade.” Mantendo a separação física, sim, com um objectivo: “Senão, era impossível dar o que temos.”
As bolachas, explica, são feitas com manteiga, farinha, ovos e açúcar. O que lhes dá aquele toque especial são, como em todas as receitas, “os ingredientes e as proporções”. Além das de manteiga, há bolachas de coco, especiarias e aveia. Um trabalho próprio de convento, este de dar mais sabor à vida das pessoas. “O nosso trabalho principal é com os ícones. É, tradicionalmente, ainda mais monástico.”

As mãos, de novo


A irmã Maria Domingos tratando do jardim
Vamos aos ícones, portanto. “Aqui, estamos sempre em contemplação”, reflecte a irmã Maria Teresa, 65 anos, actual superiora da comunidade. É um labor paciente, um sossego que não se adivinhava no trabalho. “Falamos o necessário para trabalhar.” Não se faz pintura, que no mosteiro do Lumiar não há quem pinte — em França, sim. As estampas são compradas, vêm de Roma, da Alemanha, algumas de mais longe, da Grécia ou da Rússia. Aqui chegadas, são coladas em madeira para as transformar em quadros.
Não é tradicional o ícone na espiritualidade portuguesa. Um ícone é fruto de uma mastigação do sagrado. “Na tradição ortodoxa, eram monges que faziam o trabalho. Aprendiam a desenhar, havia regras explícitas para isso. Tinham primeiro um tempo de oração e só depois íam pintar. Começavam sempre pelo ícone da transfiguração [de Jesus].”
As mãos, de novo, a preparar as tábuas e a cortá-las. A remeter para a contemplação do mistério, daquilo que apenas se pressente. Mãos, diz o cântico, “de gestos simples de amor e invenção”. As tábuas são cortadas à medida e alisadas numa máquina própria. Colam-se as estampas, colocam-se numa prensa para secar, a lixadeira apara o quadro que assim nasce. Encera-se a madeira, dá-se lustro à pintura. Os mais vendidos são a “Virgem”, de Vladimir, e a “Trindade” (ou “Hospitalidade de Abraão”), de Rubliov.
“O que mais gosto é o da “Trindade” [ou “Hospitalidade de Abraão”], de Rubliov. Não se sabe, nele, qual é cada um dos três anjos. É a melhor representação do mistério da Trindade. E a de mais beleza, também.” As cores revelam significados plenos: o azul e o vermelho para a divindade, o dourado para dizer a realeza celeste.
É também esse o que as pessoas mais procuram. Começou esta adesão há uns 15 anos. Quando grupos de jovens portugueses começaram a ir à comunidade monástica de Taizé, em França. Ali, monges de diferentes confissões cristãs (católicos, protestantes, ortodoxos) vivem em comum e rezam assumindo as diversas origens espirituais.

A vida


As quatro irmãs que compunham a actual comunidade; da esquerda para a direita, 
Maria João, Luísa Maria, Teresa e Maria Domingos (foto reproduzida daqui)

As monjas dominicanas trabalham apenas o suficiente para viver. “O essencial é amar o bom Deus e o próximo como a si mesma”, sintetiza a irmã Maria Bartolomeu, nascida em 1910, no mês de Setembro, ainda a República não despertara. É ela que prepara as tábuas para a irmã Teresa. Mas já fez cerâmicas e trabalhou na cozinha, na padaria e na vacaria de um mosteiro em França, o mesmo num outro do Brasil. Nesses países passou 49 anos da sua vida de silêncio, antes de regressar a Portugal há 14 anos.
Ainda a irmã Mary John, inglesa de Londres, em Portugal desde 1993, está a tratar da roupa (“se tenho tempo, estudo a história das monjas em Portugal, que começou quatro anos depois da morte de São Domingos”), e já Maria Domingos podou metade de um dos lados da sebe de ligustros. Há dois anos que o não fazia, o tempo, no mosteiro, também nem sempre dá para o que se quer.
Ser dominicana — resume Maria Domingos entre as laranjeiras, os limoeiros, o perfume do alecrim e o som embalador dos automóveis na Avenida Padre Cruz — é “pôr-se em causa permanentemente, rever as necessidades do tempo e da Igreja”. É estar no meio da vida, como o cântico gregoriano deste tempo da Quaresma: “No meio da vida estamos, que auxílio procuraremos senão tu, Senhor?”

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